Prevaricação, Corrupção e Violência: o bolsonarismo escancarado

Há quem acredite em Papai Noel. Como lembra o psicólogo social alemão Erich Fromm, em sua obra clássica “O Medo à Liberdade”, no espaço de fuga da realidade, o autoritarismo em geral surge como resposta àqueles indivíduos que renunciam à própria autonomia, recusam a independência do ego individual no intuito de fundi-lo com algo no mundo exterior para fazer prevalecer a fantasia de sentirem-se amparados por Alguém poderoso e superior.

Este mecanismo de fuga apresenta-se por meio da submissão e da dominação, impulsos também conhecidos como masoquismo e sadismo, ambos servindo como resposta a um desamparo insuportável diante da Existência. Neste contexto, impulsos masoquistas tendem a auxiliar os indivíduos a escapar do seu intolerável sentimento de solidão e impotência por meio da submissão a quem lhes represente um poder autoritário que lhes dê segurança.

Por outro lado, o termo “narcisismo maligno”, Fromm o utilizou para se referir a alguém com grave quadro patológico de “amor a si próprio”, que entre os sintomas estão os sentimentos de grandeza, dominação, impulsividade, intolerância, indiferença pelos outros e ausência de remorso por crimes cometidos. Os ditadores criam para si uma realidade e começam a acreditar que o mundo é para ser segundo sua imagem e semelhança, agindo para que os seus súditos sejam seu espelho. Não é à toa que produzem expressões como “o meu partido”, “o meu exército”, “a minha constituição”.

Esta teoria encaixa-se muito bem como um dos suportes analíticos para a compreensão da eleição do bolsonarismo em 2018, como etapa de aprofundamento do golpe híbrido de 2016, a partir de uma orquestração estratégica definida pelo estamento militar, conduzida pelo então comandante Villas Bôas com os seus generais quatro estrelas; a mídia hegemônica, sob o comando da Rede Globo; setores do judiciário, sob a batuta midiática de Sérgio Moro (condenado por suspeição e incompetência pelo STF); setores religiosos cristãos de tradição católica (Rede Vida, Rede Canção Nova, Renovação Carismática, TV Evangelizar, Fazendas terapêuticas etc.) e de tradição evangélica (Igreja Universal, Igreja da Graça, Assembleia de Deus e outras); o Capital nacional e internacional, por meio de seus representantes no Congresso Nacional.

A estratégia eleitoral golpista em 2018 baseou-se na desconstrução e demonização das lideranças e políticas públicas responsáveis por colocar em marcha o processo democrático participativo e inclusivo que governava o país de 2003 até 2015, para ao mesmo tempo criar artificialmente um Mito incorruptível, “imbrochável”, “incomível”, “escolhido pela vontade de Deus” e “ungido pelo povo”, blindando-o de qualquer oposição midiática e de investigação pelas instituições republicanas policiais e judiciárias. Um boneco de cordas, tornado presidente, para distrair a grande massa de telespectadores por meio de uma engenhosa política de “fake news”, diante da destruição, pela extrema-direita no poder, das conquistas sociais brasileiras em andamento.

O jornalista Elio Gaspari, em sua magnífica obra em cinco livros, “As Ilusões Armadas”, voltada para o estudo da ditadura militar instaurada no Brasil a partir de 1964, ensina que após a consolidação de um golpe político, como o que ocorreu em 2016 no Brasil, a sua pior fase por ele denominada é “a fase das ambições”, quando os golpistas instalados no governo começam a definir “com quem” e “onde” será fatiado o poder assaltado.

A título ilustrativo destaca-se o registro de Gaspari sobre a manobra realizada pelo general Amaury Kruel, então comandante do II Exército, com sede em São Paulo, para neutralizar o poder do seu inimigo histórico general Humberto Castelo Branco. Para isso, Kruel compôs uma aliança com o tropeiro Costa e Silva permitindo-lhe emparedar o ditador cearense para assumir o poder em 1967.

Na última sexta-feira, 25/06, acompanhamos na CPI do Genocídio, no Senado Federal, ao depoimento dos irmãos Miranda denunciando o forte esquema de corrupção arquitetado no Ministério da Saúde, motivo da instalação da CPI, no evento do superfaturamento na importação da vacina Covaxin, mediada inclusive por uma operação triangular pela presença de uma terceira empresa off-shore de Cingapura.

Três breves aspectos gostaríamos de destacar daquele momento. Primeiramente, chama atenção o fato de o valor patrimonial ter uma ascendência sobre o valor da vida humana. Até então, a infinidade de denúncias apresentadas e comprovadas pela CPI em relação às negligências e atitudes deliberadas, por parte dos operadores do ministério da Saúde, em obediência ao Presidente da República, que ocasionou até a presente data a morte de 510 mil pessoas, não foram suficientes para causar a comoção e o devido encaminhamento para a condenação dos responsáveis.

Somente com o surgimento da corrupção financeira, contida na referida operação de importação, há uma motivação social voltada para exigir a penalização dos responsáveis, entre estes o presidente da República. Uma nítida demonstração da inversão de valores causada pela cultura materialista produzida pelo capitalismo neoliberal para o qual valor absoluto é o Lucro Material em detrimento do valor intrínseco e insubstituível da vida humana. É preciso pensar criticamente sobre este dado.

Em segundo lugar, em relação ao depoente Ricardo Miranda, servidor público concursado desde 2011, com a garantia legal da estabilidade no serviço, responsável pelo departamento de logística do ministério. Sua condição de servidor do Estado brasileiro – e não de governos como pretende a reforma administrativa de Paulo Guedes – permitiu-lhe reagir firmemente à pressão de seus superiores corruptores que dele requeriam a liberação de uma importação extremamente irregular e ilegal, não correspondendo ao contrato celebrado e homologado. Ricardo Miranda fez a opção pelo correto, por aquilo que pode ser comunicado aos outros. O incorreto defendido pelos superiores corruptos, como já tivemos a oportunidade de refletir em outro artigo, é justamente o contrário: aquilo que precisa manter-se na moita.

Por fim, impõe-se o registro sobre a qualidade da ação política contida na maioria dos membros da CPI do Genocídio. Apesar de representar a minoria no Senado, são detentores de um valor político inestimável ao assumirem com coerência e firmeza o papel de representantes do povo que padece pelo sofrimento com o genocídio de 510 mil brasileiros e brasileiras, resultantes da necropolítica adotada deliberadamente pelos responsáveis do Executivo Federal.

Uma vez que nem a Procuradoria Geral (PGR) nem a Polícia Federal (PF) cumpriram seu papel republicano na investigação dos evidentes crimes cometidos pelo Executivo Federal, desde sempre, na condução do combate à pandemia, a soberania popular e as instituições da Sociedade Civil, pela ação política da CPI do Senado, puderam ter acesso, por meio de fatos e provas documentais, aos crimes de prevaricação e corrupção – passiva e ativa – presentes no seio do governo de Bolsonaro. A CPI do Senado vem comprovar a importância e a força da ação política como resistência ao autoritarismo.

Agora chegamos a um novo patamar com o bolsonarismo sendo escancarado. O que farão religiosos, militares, capitalistas, juízes, procuradores, apoiadores em geral, diante da farsa bolsonarista que dia após dia se desnuda diante das câmeras de TV? Radicalizarão com o golpe por eles montado ou cederão ao vexame de verem as primeiras imagens de suas pútridas feridas expostas?

A máscara do boneco de cordas está diluindo. O que dirá seu mentor, o general Villas Bôas? Afinal, a máscara de Moro (codinome Russo no submundo jurídico), por quem Villas Bôas nutria profunda admiração, já se rasgou recentemente pelas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). E apenas relembrando, pelo lado do PSDB, na época do twitter de Villas Bôas ameaçando o STF, em abril de 2018, os governadores João Dória e Geraldo Alckmin disseram que aquela ameaça armada fora apenas “um simples alerta, palavras serenas, manifestação de um cidadão comum”. Mas como já foi dito acima, há quem acredite em Papai Noel.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .