Por uma Polícia Federal republicana

Desde a redemocratização com a Constituição de 1988 alguns chefes do executivo brasileiro usaram politicamente a cadeira de ministro da Justiça. Nos oito anos do governo tucano de Fernando Cardoso (FC), de 1995 a 2002, foram nove personagens que ocuparam aquele cargo. E neste mesmo período a Polícia Federal (PF) teve cinco diretores, com incontáveis crises. Apesar dos escândalos que marcaram a sua gestão, FC por meio de suas forças políticas no Congresso impediu ou abortou a realização de qualquer CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), contando também com o brilhante desempenho do procurador geral da República, Geraldo Brindeiro, que arquivou todas as denúncias contra Cardoso (Farra do Proer, Caso Sinvam, Pasta Rosa, Propinas para a sua Reeleição, Privataria Tucana etc.), sendo por isso batizado de “Engavetador-Geral”. Além disso, o tucano contou com o silêncio da Rede Globo sobre esses escândalos. Tudo passou desapercebidamente pela opinião pública. Como rezava a máxima de Roberto Marinho, “mais importante do que a notícia que você publica, são os fatos que você omite”.

Anteriormente, no governo do outro Fernando, o seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias (PC), montou um esquema de cobrança de propinas a empresários as quais representavam verdadeira extorsão. Os empreiteiros eram procurados pelos operadores de PC ameaçados de só receberem o pagamento pelas obras realizadas mediante propina de 15% sobre o valor a ser recebido. Foi o delegado Paulo Lacerda que comandou as investigações do famoso “Caso Collor de Mello” apurando esses crimes, resultando no impeachment desse presidente.

É com a gestão do renomado criminalista Márcio Thomaz Bastos no ministério da Justiça, a partir do primeiro governo Lula (PT), em 2003, que o quadro começa a mudar. A primeira iniciativa do ministro Bastos foi convidar Paulo Lacerda para ser o diretor da Polícia Federal, por considerar Lacerda sério o suficiente para moralizar a instituição capaz de fazê-la funcionar bem. A outra ação fundamental do ministro Thomaz Bastos foi a de conseguir junto ao Presidente Lula as verbas necessárias para equipar e modernizar a PF. Em terceiro lugar, o governo Lula ampliou o quadro funcional mediante realização de concurso público. No início do seu governo a PF contava 7.800 agentes; no final do primeiro mandato Lula contabilizavam-se 11.800 profissionais compondo o quadro. Outra ação republicana implantada pela gestão do ministro Bastos foi a de garantir o respeito à lista tríplice feita por voto secreto na Procuradoria da República. Os presidentes Lula e Dilma Rousseff, de forma republicana, sempre nomearam os procuradores mais votados pelos seus pares, ao contrário dos governos anteriores. Assim, tanto Procuradoria como Polícia Federal ganharam autonomia suficiente para desenvolverem suas operações.

Com o Golpe de 2016, instala-se o retrocesso autoritário no Brasil. Em setembro de 2019, a exemplo do que ocorreu com a nomeação dos reitores das universidades e institutos federais, Bolsonaro desconsiderou a lista tríplice divulgada em junho por eleição interna da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) e indicou um nome paroquial para ser o procurador-geral. Os três nomes mais votados da lista foram Mário Bonsaglia, Luiza Frischeisen e Blal Dalloul. Mas o nomeado foi Augusto Aras.

Na sexta-feira passada, 24, em coletiva de imprensa para rebater as graves denúncias proferidas pelo não menos contraditório ministro da justiça demissionário, Bolsonaro afirmou que quer colocar “alguém no cargo de diretor da Polícia Federal com quem possa interagir”. Segundo Moro, ele havia advertido de que isso representaria um interferência política, no que escutou do presidente a confirmação de que seria isso mesmo, uma interferência política. Ou seja, submeter uma instituição do Estado brasileiro à sua ingerência segundo seus interesses pessoais e projetos políticos.

De fato, o conteúdo da fala de Bolsonaro nessa coletiva de imprensa é bastante revelador das contradições presentes entre o discurso ideológico mistificador e personalístico que propaga em suas aparições com a prática política com a qual atua. Por exemplo, o autoproclamado presidente cristão fez questão de divulgar com muito orgulho para toda a nação que o seu filho Zero Quatro pegou metade das meninas do condomínio onde mora. O que dirá Damares, ministra da família, da moral cristã desse seu “presidente cristão”?

Capitão de artilharia, Bolsonaro usou essa suposta afirmação de Zero Quatro como forma a justificar o não envolvimento íntimo de sua família com o miliciano Ronnie Lessa, morador do mesmo condomínio na Barra da Tijuca, conhecido notoriamente por executar crimes de encomenda pela eficiência e frieza em puxar o gatilho, acusado de assassinar a vereadora Marielle Franco. Mas fica a pergunta no ar: o que incomoda tanto o inconsciente de Bolsonaro para ele sempre trazer à tona o caso ainda não resolvido Marielle Franco? Afinal, como Ronnie Lessa era um matador de aluguel, indaga-se para a solução do crime: quem o mandou executar covardemente Marielle Franco?

Em outro trecho de sua fala como presidente cristão, Bolsonaro admite que uma das razões de aceitar a demissão de Sérgio Moro é o fato de ele ser um ministro desarmamentista, postura contrária à sua que tem na violência armada uma condição indispensável para a solução dos conflitos sociais existentes no Brasil devido a forte desigualdade econômica construída ao longo dos séculos de escravismo e agora ampliada pela retirada de direitos sociais e individuais implementada pelas reformas trabalhistas e previdenciária do governo bolsonarista. Emblemática desta visão política cristã de Bolsonaro foi a ajuda de míseros R$200,00 (duzentos reais) que ele propôs para trabalhadores e trabalhadoras atravessarem a crise da covid 19. Coube ao Congresso elevar esse valor ao triplo, criando por lei um auxílio (ainda bastante precário) de R$600,00 (seiscentos reais) mensais.

No próximo artigo continuaremos analisando trechos da coletiva do capitão comparando-os com aquilo não menos contraditório dito pelo seu simbiótico ex-ministro da justiça. Afinal, como disse recentemente a advogada Rosângela Moro ao jornal Estadão, “Bolsonaro e Moro são uma coisa só”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .