Philosophiae doctor (PhD) – por méritos, por Luciano Moreira

E, interrompendo uma de nossas proveitosas conversas, na praça de alimentação do que se convencionou chamar de “shopping Amanaiara”, um acolhedor recanto em travessa de casas simples e gente alegre, agradável para os amantes do “bom papo”, onde seus pais nos recebia com cerveja ao ponto e tira-gosto caseiro, eu lhe disse, solenemente e em tom de vaticínio: “Convido-me, neste momento, a assistir à defesa de tese, com que você fará jus ao título de Doutor (Phd), na Faculdade de Ciências Sociais da USP”.

Um sorriso jovial e o compromisso com essa perspectiva compuseram a imagem da reação de um adolescente consciente de suas responsabilidades com o futuro, que apenas dava os primeiros passos de uma trajetória acadêmica que viria revelar-se diferenciada em vários aspectos, no curso de Ciências Sociais da UFC. Sim, ele demonstrava competência suficiente para tornar exitosa a sua caminhada pelas sendas do saber. E mais, denodo, vontade e disposição para ir ao campo de batalha.

Tergiversar, jamais! Houve sempre entre nós uma empatia ancorada na dialética platônica, ou seja, no diálogo comprometido com a busca da verdade. Discutíamos sobre os mais variados assuntos, sempre com o propósito, não negociado e nem imposto, de alcançar o porquê dos acontecimentos, o entendimento das atitudes dos personagens de eventos pontuais que atraíam a nossa atenção, que mexiam com a nossa capacidade crítica. Havia, também, momentos de descontração; afinal, como diziam os latinos: “Mons cum monte non miscetur”, de que se originou o provérbio português: “Duro com duro, não se levanta bom muro”.

A inteligência, a perspicácia e a mundividência com que aquele jovem fazia a leitura dos fatos, ouvia as ponderações professorais do interlocutor (umas quatro décadas a mais de existência e de vivências e de frustrações) e elaborava argumentações sólidas porque lastreadas em conhecimento, tornavam-no protagonista de uma realidade bem específica. Com uma história de vida peculiar, com raízes fincadas na brabeza do sertão alencarino e atuação profissional como garçom em tradicional restaurante da Capital, cabe-lhe bem a metáfora do lótus que teima em embelezar o negror inânime do asfalto.

Minha tarde da segunda-feira última, que preconizava um momento de reverência ao futuro, permitiu-me, também, fazer um retorno ao passado. No prédio da Ciências Sociais – próximo à Reitoria –, circunstancialmente ocupado por manifestantes contrários ao encaminhamento que o poder público brasileiro pretende impor à Nação e ao povo, após identificar-me no controle de acesso às dependências sob o solícito comando de uma jovem universitária, percorri o estreito e longo corredor do andar superior, até acomodar-me na sala de audiovisual.

Básico de Humanidades, agosto de 1976. Ali, naquele prédio, naquele corredor, nas salas de aula a que dava acesso, vivenciei as minhas primeiras experiências acadêmicas. Aprovado no vestibular do meio do ano, causando perplexidade a muitos que não me viam como “cavalo de aposta”, um professorzinho de interior e sem qualquer amadurecimento em “cursinhos”, ali estive como aluno de Economia, sob a matrícula 7621034 (76 = ano; 2 = semestre; 1 = área de estudos; 34 = classificação no concorrido certame, na área).

É, amigos. À lembrança vieram imagens que marcaram minha estreia na Academia. O trote ilógico a que os veteranos costumavam submeter os calouros – o corte dolorido e ridículo da vasta cabeleira com tesouras sem qualquer fio ou gume – serviu como meu “porto de passagem” e de motivo ao sorriso discreto da professora de Língua Inglesa I, na aula inaugural do semestre. Lembrei-me, também, do professor de Língua Portuguesa, um respeitável senhor de alvas cãs, ainda sofrendo a dor da perda de familiares em acidente automobilístico do qual só ele saíra ileso, negando-se a “dar” presença a retardatários: “Não dou, nunca dei e jamais darei! Agora, se isto lhe convier, posso consignar a sua presença, ó tardio pupilo!”

Maravilhosas eram as aulas de Introdução à Filosofia. Um ex-padre desfilava, em cada aula, o seu prodigioso talento, revestido de uma natural simplicidade. Do mito, alegoria ou parábola “A caverna” de Platão, recordo a discussão, magistralmente conduzida pelo facilitador, que envolveu a turma toda. As minhas deficiências em Cálculo Diferencial e Integral I e II, contornadas com extrema dedicação, causaram, mais adiante, já no Profissional, a revelação de que não nascera para ser economista.

Sorri, sem alardes, ao recordar-me de uma vivência compartilhada com o experiente professor de Introdução à Economia. O semestre já se encaminhava para o final. A aprovação dependia do atingimento da média BOM (numa escala conhecida como EBRIM: Excelente, Bom, Ruim, Insuficiente e Mau), considerados os conceitos obtidos em três específicos momentos de avaliação: NPC – Nota Parcial de Conhecimento; NTI – Nota de Trabalho Individual; e NFC – Nota Final de Conhecimento. Um conceito MAU em qualquer dessas avaliações equivalia à reprovação. Elaborei um trabalho individual tecnicamente perfeito que me consumiu uma tarde e uma noite, de domingo para segunda, data da entrega. Perdi o primeiro ônibus que fazia a linha Caucaia-Fortaleza. Atrasei-me e, quando cheguei à sala de aula, o professor já houvera recebido o trabalho de todos os alunos que se encontravam ali no começo de sua aula.

O respeitável mestre não se permitiu sequer ouvir minhas ponderações. Eu houvera perdido a disciplina. Num ímpeto da perda consumada, transformei o meu laborioso trabalho em uma bola disforme, lançando-a, sob o olhar de espanto de colegas, em direção ao telhado do prédio central. Ali se dava, de forma teatral – dramática, pois –, o adiamento de meu ingresso na etapa seguinte – o Profissional – e, por conseguinte, a quebra da sequência lógica do processo de graduação.

Urgência. Essa a palavra que presidiu os meus atos, após ouvir, na quarta-feira seguinte, colegas de disciplina assinalando que o mestre acolheria trabalhos dos faltantes até o início da aula da sexta próxima. Era o castigo que me impusera pelo comportamento reprovável da segunda. Refiz o trabalho, com cálculos e gráficos em papel quadriculado, seguidos de comentários embasados em teorias econômicas.

Começo da aula de sexta, às sete e pouco da manhã. Concluída a chamada, uma discreta olhada para a turma e a sentença: “Quem ainda não entregou o TI, que o faça agora ou se arrependa para sempre!”. Levantei-me da última fila de carteiras, sentindo ser o foco da atenção de todos – o único retardatário –, dirigi-me à mesa do professor, e, ao entregar o trabalho tecnicamente perfeito, não perdi a oportunidade do agradecimento: “Professor, permita-me agradecer-lhe por mais esta oportunidade”. Ele sorriu ligeiramente e advertiu-me: “Evite situações como esta!”.

Honoráveis professores, renomados doutores, compunham a seleta banca examinadora. Um reduzido número de espectadores, entre eles, eu, no gratificante cumprimento do que vaticinara há cerca de uma década atrás. Entre USP e UFC, apenas a diferença geográfica. Estrategicamente posicionado, o doutorando, o jovem postulante ao nível máximo do conhecimento formal.

Aberta a sessão solene, os formalismos seguiram o rito procedimental determinado pela burocracia acadêmica. Apresentação resumida da tese – e o proponente a conduziu brilhantemente, ancorado em slides de powerpoint –, apreciações críticas e questionamentos dos dois examinadores visitantes (Um deles chegou a citar Machado de Assis, e a súmula das súmulas do intrigante relacionamento entre Bentinho e Capitu; o outro, traçou uma linha histórica da política cearense, desde a oligarquia do clã Accyoli até o grupo dos Ferreiras Gomes, objeto de estudo do trabalho sob exame) e dos dois examinadores da Casa, que centraram suas observações na proposta central da tese, qual seja perscrutar os elementos que dão sustentação ao funcionamento de um grupo político através de alianças. Ao orientador, coube concluir o processo avaliativo, ressaltando as dificuldades enfrentadas no curso de todo o estudo.

Projetando um perfil de pesquisador eficiente, nas explicações, nos esclarecimentos e nos compromissos assumidos ante as revisões propostas e necessárias, o doutorando mostrou a tranquilidade própria de quem é profundo conhecedor do trabalho que realizara.

E o título de Doutor em Ciência Política, concedido em momento de singular expressividade, coube-lhe muito bem. Por méritos.

Post Scriptum: Algumas horas depois, a minha natural felicidade, por haver compartilhado da significativa vitória de um respeitável amigo, sofreu um forte abalo. É que começaram a chegar as notícias do trágico acidente envolvendo o voo que levava a Chapecoense, clube do interior catarinense e de marcante trajetória ascendente, à realização do sonho de disputar a final de uma competição internacional.

No texto acima, a minha singela homenagem a todos que foram atingidos pela tragédia se faz pela junção, em sequência, das letras iniciais dos vocábulos que introduzem os parágrafos: EU TAMBÉM SOU CHAPE!!!

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

1 comentário

  1. Francisco Luciano Gonçalves Moreira

    A “súmula das súmulas” em Dom Casmurro, clássico machadiano, a que referiu um dos doutos examinadores visitantes, deveria ter sido, segundo ele, proferida por Bentinho, numa situação em que se encontrara ladeado por Capitu e Escobar. E o homem que se julgava traído teria dito, com aparente resignação: “Aqui estou entre a mulher que amo e sempre amei e o melhor de todos os meus poucos amigos.” E exposto, então, a síntese do que insistia em desconfiar: “E os dois me impuseram um humilhante par de chifres.”