O diagnóstico da crise a partir da representação política não pode menosprezar a complexidade do momento, pois ela é, além de ético-político, também social e econômico. Analistas clássicos da política brasileira, como Sérgio Buarque, Raimundo Faoro, e outros, já diagnosticavam o problema da representação como a resistência de um Brasil tradicional às mudanças trazidas pela modernidade a partir da fragilidade, ou mesmo ausência, da cidadania. Oliveira Viana, que morreu no início da década de 1950, tocou na ferida ao defender que o Brasil não necessitava da divisão dos Poderes, pois dominava a vida comunitária numa economia de subsistência. A modernidade não viria pelo mercado, mas pela política, a partir de uma ditadura para se criar o cidadão, o consumidor, num ambiente de competitividade civilizada. Antropólogos, como Gilberto Freyre, é que viam com otimismo o caminho civilizatório que o Brasil tradicional trilhava.
Democracia é quando a fonte do poder está na soberania popular, e se expressa diretamente ou pela via da representação política. Um dos componentes importantes da atual crise brasileira está no entrave que o processo de representação política encontrou no caminho de sua consolidação democrática. Os partidos políticos, que intermedeiam a relação da sociedade com a política, necessários à legitimidade e à governabilidade, se fragmentaram e não prosperaram como instrumentos privilegiados desta representação. Eles estavam afogados no clientelismo tradicional dominante e se fortalecendo com a compra do voto. O executivo se fortalecia no vácuo desse legislativo frágil e o judiciário, por muito tempo, em crise de identidade.
A divisão de poderes, com seus freios e contrapesos, é uma organização própria de uma sociedade competitiva, de uma economia de mercado que, segundo Montesquieu, fomenta a moderação. Na década de 1970, com a mobilização do empresariado em direção à política, o tema da revolução burguesa passou a ser discutido, entre outros, por Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Bresser Pereira, Francisco Weffort. O empresariado havia tirado o tapete dos governos militares e se expressou tanto dando uma derrota ao partido do governo (ARENA) na eleição municipal das capitais dos Estados, em 1974, quanto no pedido da “abertura política”, quatro anos depois, concomitantemente com a memorável greve do operariado do ABC paulista.
Simon Schwartzman, um dos participantes desse debate, tocou na ferida da fragilidade da cidadania e o reflexo no judiciário. Sua tipologia incorporou a variável federativa. São Paulo, a locomotiva, é onde a representação política se mostrava mais fecunda, mas foi incapaz de irradiar o desenvolvimento econômico para todo o Brasil. Observou, contudo, que na ausência de representação nos Estados mais atrasados, a participação política seria por cooptação das lideranças da sociedade pelo Estado. Schwartzman refaz assim a análise de Faoro que estudou o patrimonialismo, tradicional herança portuguesa, considerando que a racionalidade, via lucro, presente na sociedade brasileira, já tinha um componente de modernidade. Era já uma transição em curso.
Sobre a raiz do autoritarismo, Simon Schwartzman diz textualmente que “assim como a dominação racional-legal pode degenerar em totalitarismo burocrático, é possível para este tipo de burocracia substituir somente com seu componente racional, mas sem seu componente legal. Este é, em uma palavra, o elo teórico que faltava para a compreensão adequada dos sistemas políticos neopatrimoniais: a existência de uma racionalidade de tipo exclusivamente ‘técnico’, onde o papel do contrato social e da legalidade jurídica seja mínimo ou inexistente. A importância deste conceito para o estudo e o entendimento de sistemas políticos atuais que não os das democracias ocidentais é óbvia” (Schwartzman, S., As Bases do Autoritarismo Brasileiro, Campus, Rio de Janeiro, 1988, 3a. ed., p. 63).
Schwartzman percebeu o que dificultava a modernidade: “o papel do contrato social e da legalidade jurídica seja mínimo ou inexistente”. O Brasil possuía um contrato social mínimo e um “jeitinho” que dificultava a modernidade e o desafio, na perspectiva estrutural, era sair de uma economia de subsistência para uma economia de mercado. O reflexo na política era a dominação autoritária. A racionalidade moderna viria a exigir maior base de legalidade para a segurança e a prosperidade. A dificuldade, portanto, era romper essa cultura patrimonialista, que Schwartzman já reconhecia, apelando também para Weber, como neo-patrimonialismo.
A Constituinte de 1988 refletia essas necessidades, republicana e legalista, e os poderes, judiciário, legislativo e executivo, passaram a ser um foco importante na construção de nossa modernidade. O surgimento de uma nova cidadania a partir da modernidade da economia faz os poderes da república se adaptarem a esta nova realidade. É uma tarefa lenta, mas que o Brasil está acelerando, pois é uma mudança cultural. É também uma correlação de forças da sociedade refletindo na dinâmica dos poderes. O Executivo tenta romper com o patrimonialismo e o Legislativo tem o desafio de fortalecer representação política via partidos políticos. O Judiciário, como único poder que não se submetia à soberania popular, adquire um controle externo e ocupa espaços nesses pesos e contrapesos na busca da moderação de uma sociedade conflituosa e dividida por interesses pontuais e contraditórios.
Assistimos o confronto latente dos poderes buscando a civilidade na ética. Processo de impeachement da presidente Dilma, Mensalão, Lava Jato trazem para o cidadão a impressão de que a política é para profissionais, pois o jogo transitório, de ajuste do pacto social, é de ocupação de espaços dos poderes da República. É um ajuste estrutural muito duro para se chegar à sonhada moderação. A história, contudo, nos faz continuar otimista!
Claudio Fontenele
Caro Professor Josenio,
Inspirado nesse seu texto, pretendo escrever ou influenciar alguém da pena mais leve a escrever sobre AS COLUNAS SOCIAIS E MALEABILIDADE DO SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS ESTATAIS NO BRASIL !!!
Um escrito a ser feito na perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda( O homem cordial) e Raimundo Faoro(Relação entre o Público e o Privado).