AINTERSECCIONALIDADE DAS CRISES
A crise econômica que eclodiu em 2014 no Brasil, durante o governo Dilma, cujo desfecho político foi o golpe de 2016, não foi resolvida, como prometiam os defensores da cassação golpista. Essa crise é fruto do esgotamento do modelo neodesenvolvimentista, ou da “reforma gradual e pacto conservador”, como denomina André Singer, adotado pelos governos petistas (Lula e Dilma) como forma de enfrentamento da pobreza, da exclusão social e do desmantelamento do Estado varguista promovido por duas décadas no país pelas políticas neoliberais.
Com o governo golpista de Temer, a crise econômica se transformou numa crise social: o Brasil voltou a ocupar o mapa da pobreza, o desemprego acelerou , cresceu o número de moradores de rua, parte da classe média perdeu o poder aquisitivo, ficando sem condições da manter plano privado de saúde e, em alguns casos, teve que trocar os filhos de escola por outra de menor qualidade e menor preço, ou por escolas públicas.
A resposta para as crises econômica e social pelo governo Temer, em obediência ao mercado, foi mais neoliberalismo: aprovou uma Reforma Trabalhista, que retirou os direitos dos trabalhadores garantidos na Constituição de 1988, precarizou as relações trabalhistas, tornou a força de trabalho mais barata para o patronato e enfraqueceu as organizações sindicais. Aprovou a PEC do Teto dos Gastos, conhecida como a PEC da morte, que congelou por vinte anos os gastos do governo com educação, saúde, segurança pública, moradia, cultura, educação e pesquisa. Iniciou um processo de privatização e entrega do petróleo do Pré-Sal para o capital estrangeiro,e só não aprovou a Reforma da Previdência porque foi revelado o seu envolvimento com o escândalo de corrupção envolvendo as empresas dos irmãos Batista, donos da JBS (SEARA, SWIT e FRIBOY) e BRF (SADIA e PERDIGÃO).
Um vídeo registrou um assessor de Temer saindo de uma pizzaria com uma mala com 500 mil reais. Em delação premiada, Joesley Batista incriminou e mostrou provas contra Temer e o senador Aécio Neves, do PSDB. Temer foi o primeiro presidente da história do país a ser denunciado por crime comum durante o exercício do mandato, mas foi protegido pelos donos do poder e pela Operação Lava Jato, sob o comando de Sérgio Moro, que nunca teve real compromisso em combater a corrupção.
Com a eleição do governo Bolsonaro, o país ficou abandonado, sem governo e atônito diante do desmantelo e do descaso para com o país. Todavia, a cisão e a polarização que marcaram o período pré-eleitoral se consolidaram, de forma mais qualificada, com a saída da extrema-direita do anonimato para a militância nas ruas e as esquerdas sendo silenciadas. Aprovou-se a Reforma da Presidência com o apoio militante dos meios de comunicação do país. Em pouco tempo, juntou-se à crise econômica e social uma crise política, mas as investidas autoritárias de Bolsonaro e de seus apoiadores foram toleradas, porque os empresários, o sistema financeiro e a grande mídia esperavam por mais duas reformas comandadas por Paulo Guedes, a Reforma Fiscal e a Reforma Administrativa.
O governo foi mantido, mas a mídia passava a ideia de que Bolsonaro não governava, que ele só tinha compromisso com a sua agenda moral e com o Gabinete do Ódio (fascista e genocida), que as reformas em curso eram fruto do compromisso do Congresso e do ministro Paulo Guedes com o país. Todavia, em março de 2020, a resposta genocida do governo à crise sanitária ou humanitária, provocada pela pandemia do coronavírus, fez com que parte do seu eleitorado, parte da burguesia brasileira e da mídia abandonasse o apoio ao governo.
Ao tentar aproveitar a crise da covid-19 para implantar uma política genocida, conhecida como imunização de manada — que consiste em não tomar nenhuma medida e evitar a qualquer custo o isolamento das pessoas, com o objetivo de promover a morte dos indesejados, como favelados, moradores de rua, presidiários, velhos, pessoas portadoras de deficiências e parte da classe média, rejeitando as orientações e protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS), dos especialistas da área de saúde e das indicações de pesquisas cientificas —, Bolsonaro passou a sofrer oposição de amplos setores da sociedade, dos governadores e dos prefeitos.
Bolsonaro, então, foi para o confronto, demitiu o ministro da Saúde, confrontou-se com governadores e prefeitos e, de forma mais ostensiva, passou a atuar em duas frentes: por um lado, com uma luta permanente para acabar com o isolamento social e impor a volta ao trabalho; por outro, intensificou com seus apoiadores, na sociedade e no governo, a mobilização por intervenção militar, pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e fez duras críticas contra o Congresso, gerando uma crise institucional. Assim, a agenda de um golpe institucional e um golpe militar passou a ser a agenda oficial de um governo que não tem proposta para resolver os problemas que afligem a maioria da população brasileira.
A ATUAL SITUAÇÃO DE BOLSONARO
O governo Bolsonaro está isolado e vem sendo constantemente desautorizado pelo STF em suas tentativas de impor medidas autoritárias e contrárias ao interesse público. Enfrenta oposição da maioria dos governadores e prefeitos, investigação na CPI das Fake News ou do Gabinete do Ódio e processo junto ao STF por tentar usar a Polícia Federal (PF) em benefício dos interesses familiares e de amigos, caso aberto depois da saída do ex-ministro Sérgio Moro do governo. Além disso, existem mais de quarenta pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados e vários pedidos de cassação de chapa Bolsonaro/Mourão no STE.
Atualmente, junho de 2020, a principal base de apoio ao governo está no sistema financeiro, setor que sempre acumulou e acumula riquezas sem arcar com nenhuma responsabilidade para com a sociedade. Ao invés de ter sido taxado, o setor, sem nenhum motivo, foi premiado com o valor de um trilhão e duzentos bilhões de reais no início da chegada do vírus no país. O setor extrativista ou do agronegócio também sustenta o governo, pois além de ter sido isento de multas, de ter conseguido a liberação para o uso indiscriminado de agrotóxicos em suas lavouras, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles tem aproveitado a crise do coronavírus para abrir a porteira,ou seja, revogar leis de proteção ao meio ambiente e fazer vistas grossas para a desobediência às leis, incentivando todos os desmandos possíveis pelo setor, o que está aumentando os conflitos, a violência e as mortes contra camponeses, seringueiros, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pequenos posseiros, e promovendo o aumento do desmatamento das florestas e da degradação ambiental.
Dentro do Estado, o governo tem apoio de parte do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Procurador Geral da República, de parte da Policia Federal, tem apoio em focos da Polícia Militar em vários estados, das milícias, das empresas privadas de segurança e das igrejas neopentecostais.
O governo se articula para continuar no poder e mobiliza o apoio do Centrão, articulação política que agrupa o que temos de pior em termos de corrupção política brasileira, em uma relação de troca de favores ou do chamado “toma lá, dá cá”, o que já demonstra para os seus eleitores como Bolsonaro é mentiroso. Para se salvar e acobertar os crimes de seus filhos e amigos, Bolsonaro se afoga cada vez mais em esquemas de corrupção e práticas autoritárias.
Bolsonaro tenta retomar a agenda de combate à corrupção, tenta movimentar a velha Lava Jato sem Sergio Moro, para desmoralizá-lo e demostrar ter compromisso com o combate à corrupção. Nesse sentido, passou a orientar a Polícia Federal (PF) a investigar os contratos de licitações dos governadores e prefeitos durante a crise da covid-19, como aconteceu no Rio de Janeiro. A ideia é criar um clima de fatos para uma narrativa na qual ele possa se colocar como vítima dos governadores. Nesse sentido, também orienta a PF a ressuscitar antigos processos que haviam sido arquivados por Moro durante a Operação Lava Jato, como a delação de Tacla Duran, ex-consultor do Grupo Odebrecht, que acusa o advogado Carlos Zucolloto, amigo pessoal de Sergio Moro, de ter recebido 5 milhões de dólares para ajudá-lo a obter vantagens no acordo de delação premiada junto à Lava Jato, o que pode trazer mais esclarecimentos sobre o golpe contra Dilma e os motivos reais da condenação de Lula.
Além dessas ações, Bolsonaro tenta responsabilizar governadores e prefeitos, STF e setores da mídia pela crise econômica gerada pelas medidas neoliberais de Paulo Guedes e por sua incapacidade de governar, tentando passar a ideia de que o desemprego e as desigualdades sociais no país têm como causa não sua a incapacidade de governar, mas a maneira como ele foi impedido de acabar com o isolamento social durante todo o período do coronavírus. E, em um outro movimento, menos visível, seus aliados falam em adiar as eleições de 2020 para vereador e prefeito das capitais.
SINAIS DE DESAGREGAÇÃO
Empresários da indústria, do comércio e da agricultura começaram a pressionar o governo por ajuda financeira para poder tocar os seus negócios, alegando falta de empréstimos para pagar dívidas e para fazerem investimentos. Do ponto de vista político, vem ocorrendo um movimento de afastamento do governo por parte de setores do mercado e da burguesia. Trata-se da parte da elite que vem tentando articular uma frente contra a extrema-direita distante dos setores de esquerda. Todavia, a maior dificuldade é encontrar um nome para liderar esse movimento, além da distância das eleições presidenciais, que só será dois anos após as eleições municipais.
Enquanto não aparecer ou se fabricar uma liderança para articular uma frente de centro — pois no Brasil a posição política de centro (PSDB, PMDB/MDB) foi derrotada e destruída nas eleições de 2018 — como alternativa ao presidente Bolsonaro, não haverá apoio à sua derrubada. Faz parte dessa articulação para formação de uma frente de centro, sem a participação da esquerda, parte do mercado de comunicação: Estadão, Folha de São Paulo, Sistema Globo, Bandeirante, parte do agronegócio que tem o mercado chinês como maior comprador, DEM ePSDB. Os possíveis nomes que podem ser viabilizados por essa articulação são o governado de São Paulo, João Doria, o deputado Rodrigo Maia e o ex-ministro Sergio Moro. Esse movimento não tem críticas a fazer à política econômica aplicada por Paulo Guedes, e o mote para fazer oposição ao governo Bolsonaro é de que o atual momento não é propício a conflitos entre os poderes, mas de união de todos contra o coronavírus. É dentro desse mote que eles criticam o presidente Bolsonaro em suas investidas contra a democracia, e apoiam os movimentos pró-democracia.
A POSIÇÃO DAS ESQUERDAS
No atual momento, as esquerdas brasileiras ainda estão “grogues na lona”, desprovidas de lideranças que sejam capazes de falar para um conjunto maior da sociedade, e desprovidas de um projeto político claro, que seja capaz de enfrentar o conjunto de crises que afetam o país. Parecem mais interessadas em apostar suas fichas para faturar alguns mandatos políticos nas eleições municipais de 2020 e nas eleições presidenciais de 2022. Dos dois blocos que podemos considerar de esquerda, nenhum aposta na cassação do mandato de Bolsonaro, nem por meio do impeachment e nem na cassação da chapa por parte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Eles apostam em um sangramento lento e gradual do governo, pensando que dessa forma podem também esvaziar o apoio que ele tem em determinados setores da sociedade. Pensam que uma cassação nesse momento poderia acirrar a divisão da sociedade e colocar Bolsonaro como líder vitimado de grupos milicianos e fascistas.
O que se poderia chamar de esquerda está dividido entre dois blocos: um de centro-esquerda, composto por Ciro Gomes, do PDT, Marina Silva, da Rede, Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, grupo que rejeita a participação do PT, mas que conta com a simpatia e pode ser aliado do grupo que quer formar uma saída pela restauração de uma posição política de centro. Esse grupo tem mais espaço na mídia. O outro bloco, de esquerda, ainda não tão bem articulado, com o PT, o Psol e o PSB, e articulando outros como o PC do B. Este bloco está abrindo mão de voltar a ocupar os espaços da rua, estão vacilando em não colocar em movimento de forma clara e contundente a bandeira de cassação da chapa, de se colocar em confronto direto com as ações do governo Bolsonaro. Parece-me que vão ser atropelados pelos movimentos e iniciativas da sociedade.
A POSIÇÃO DE OUTROS SEGMENTOS DA SOCIEDADE
Parte da classe média que votou em Bolsonaro, iludida que estava diante de um homem sério, que lutava contra a corrupção e pela implantação de uma nova política, ou a que teve a sua vontade política manufaturada pelos afetos de ódio ao PT, está decepcionada e constatando que deu um “tiro no pé”. Esses segmentos passaram a fazer oposição por meio das redes sociais,onde disputam opinião, participam de lives e usam suas janelas para bater panela em protestos contra o governo.
A classe trabalhadora, a maioria da população de pobres e miseráveis do país, pessoas ligadas ao setor informal da economia, pessoas que se encontram desempregadas ou em subempregos, e que, agora, estão no epicentro da pandemia, tem como principal preocupação a luta pela sobrevivência. Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de maio de 2020, constata que 17 milhões de residências são compostas por gente sem renda de trabalho, ou seja, vivem do Programa Bolsa Família, de cesta básica que lhes chegam por ações filantrópicas, de ajuda de algum Benefício de Prestação Continuada (BPC), de aposentadoria de algum idoso da família e de esmolas. Portanto, a miséria e o conjunto de crises vividas pelo país fragilizam os trabalhadores,fragmentando-os enquanto classe e os deixam sem condições de adotar um posicionamento político organizado por meio de pressão em torno de alguma causa, protestos, passeadas e organização social.
Os sindicatos, sejam de servidores públicos ou privados, foram destroçados pela Reforma Trabalhista e pela Reforma da Previdência. Ficaram sem recursos, alguns até para pagar aluguel da sede, perderam a capacidade de mobilização, permanecendo dentro de uma conjuntura que dificulta qualquer ação por melhorias salariais ou, até mesmo, por reposição de perdas salariais.
Diante desse cenário, multiplicam-se em todo o país ações de solidariedade de pessoas e instituições em apoio às pessoas em situação de sofrimento, risco e fome. São ações solidárias que amenizam o sofrimento, que provam que a maior parte da população não possui uma visão individualista, e que são importantes para o fortalecimento dos laços socais, que atuam pela ausência do Estado junto às populações vítimas das políticas neoliberais do governo.
O QUE CADA UM PODE FAZER
Nesse momento, tão crítico e sombrio, vivido pelo nosso país, algumas medidas podem ser tomadas por qualquer pessoa interessada em outros rumos para a nação, como disputar a formação de opinião nas redes sociais, colocando-se contra o fascismo e o racismo, defendendo a cassação da chapa Bolsonaro/Mourão e, o mais importante, colocando-se contra o neoliberalismo rentista e extrativista.
Podemos tirar parte do nosso tempo para ler, formar-se e fazer formação política. Podemos bater panela em protesto contra o governo, o que pode ser feito diariamente e de forma sincronizada em cada bairro ou cidade. Podemos colocar em nossas janelas bandeiras com palavras de ordem, como “Fora Bolsonaro”, e devemos, sim, ocupar as ruas em defesa da democracia e contra as políticas neoliberais rentista e extrativista. E, claro, devemos estimular as lideranças políticas e os partidos de esquerda para se empenharem na construção de um projeto para o Brasil.