Para Clarice, com candura: estilo e engenho do contista

Leitora tece generosas considerações à coluna da semana sobre livro de Chico Buarque —, e lamenta que não tenha feito referência ao conto Para Clarice Lispector com candura, que diz ser “o melhor de todos”.

De fato, cara leitora, foi imperdoável de minha parte. Ou, quem sabe, percepção inconsciente de que não se deve explorar uma obra-prima no espaço exíguo de uma crônica de jornal. Vá lá, ao fim e ao cabo, dou-me ao comentário que você, com a propriedade de uma amante de Clarice, cobra deste escriba desatento.

Um dos dois contos em terceira pessoa, entre oito do livro, Para Clarice, com candura mistura ficção e realidade em proporções quase indistinguíveis, exceto pelo desfecho em que Chico Buarque dá asas à imaginação e joga com o elemento cômico que descontrói a leve tensão dramática de todo o conto: a história de aficionado leitor de Clarice Lispector pouco antes da escritora publicar o seu transgressor Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de 1969, cujo enredo, em certa medida, converge para a experiência vivida pelo pretenso poeta que confiara à escritora uma avaliação de seus escritos. Ocorre, aqui, algo como um “mise-en-abîme” estilizado que torna a narrativa profundamente sedutora. O conto, insisto, é de uma beleza sem nome, como de resto o livro inteiro com que Chico Buarque presenteia seus leitores na antevéspera do fim de ano.

Não seria muito dizer que o contista fez, nas contadas vinte páginas com que tece a sua narrativa, um tipo de biografia ficcional da autora de Perto do coração selvagem, não discorrendo sobre vida e obra de Clarice Lispector, claro, na linha do que foi possível a Benjamin Moser no seu incontornável Clarice, 2009, em que cobre a trajetória de Clarice Lispector da infância miserável na Ucrânia ao reconhecimento no Brasil e no mundo. Seria um despropósito em face do conto de Chico Buarque uma vez que estamos falando de ficção, e ficção, como vai dito, da melhor qualidade. Mas, como é próprio de um especialista em sutilezas, a matéria essencial do conto, a exemplo do ficcionista Chico Buarque de Holanda, dissecando o espírito de Clarice, indo aos traços mais anímicos de uma mulher de personalidade tão complexa e tão surpreendente, malgrado o rótulo de tímida, para desvendar seus mistérios, suas inconfessáveis pulsões, como a penetrar no seu indevassável mundo interior.

É o que ocorre, por exemplo, nas primeiras linhas do conto, quando dá a ver uma das marcas de caráter mais desconcertante de Clarice Lispector: o intimismo da dama inacessível que se contradiz num piscar de olhos, como no convite inesperado a um jovem desconhecido para um café de segunda-feira. Ou, noutra passagem, reeditando um caso ocorrido ao próprio Chico Buarque, quando desaparece do convidado sem lhe dar qualquer satisfação, até que esse conclua, pelo perfume renovado e o cabelo molhado, que se ausentara em meio à conversa para um banho rápido, como a se equilibrar no fio delicado que separa a informalidade da má educação. É Clarice Lispector com suas excentricidades, seu jeito inusitado de tocar a vida.

No entanto, é na passagem em que faz alusão ao incêndio de que foi vítima a escritora, porém, que a narração mais ainda entrelaça elementos da realidade e da ficção. Aqui Chico Buarque invade um território poucas vezes explorado de forma tão cristalina, e traz à tona o drama vivido por uma mulher extremamente vaidosa que vê seu corpo da noite para o dia (a mão direita, sobretudo) parcialmente deformado no desastre: “Tinha certeza de que a qualquer momento, quando ela estivesse distraída,  ele não resistiria a espiar de relance aquela mão. Ela talvez o pressentisse, porque de repente levantou o braço esquerdo e consultou ostensivamente seu relógio, fazendo questão de que ele também o visse, como a indicar que o tempo da visita estava esgotado”.

A habilidade do contista é tanta, que o leitor, com uma clareza quase cinematográfica, extrai dos gestos e titubeios da personagem, a própria Clarice Lispector, a nítida conclusão do quanto o acidente teria repercussão para o resto de sua vida: “E agora levava o cigarro à boca com tal naturalidade, que afinal a mão direita lhe parecera tão sã e elegante  quanto a outra, com a diferença de uns dedos um pouco mais magros e ossudos. E a pele da região parecia apenas ligeiramente escurecida, como se ela costumasse viajar de carro com um braço para fora da janela”.

Contudo, onde a sugestão de que estamos diante de um exemplo clássico de intertextualidade com relação a Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres?

Como neste que é o mais autoral dos livros de Clarice Lispector, Para Clarice, com candura tem como fio condutor a expectativa amorosa de um leitor contumaz da escritora cuja paixão, como sugere com refinada sutileza o narrador, parece correspondida: “Veja lá, disse a mãe com ironia, veja lá se você não está se apaixonando. […] Veja lá, filho, veja lá porque ela tem uma queda por rapazes frágeis, disse caindo na risada”. Sob este aspecto, aliás, não é sem razão que se pode destacar uma fala de Clarice quando da primeira visita do rapaz a sua casa: “O que você acha do amor?” E, mais adiante, de forma ainda mais insinuante, “queria mesmo era ouvir a sua voz, saber de sua vida, se ele ainda tinha namorada firme, se de vez em quando também se sentia só”.

Como a confirmar as expectativas da mãe, o rapaz,a essa altura já conhecido entre os estudantes de Letras como o amante secreto de Clarice Lispector, passa dias e noites à espera de um novo “convite para o jantar romântico”.

Sustentando-se, pois, em sutilezas e situações intencionalmente eivadas de ambiguidade, e vazado num estilo elegante e profundamente expressivo, que é mesmo uma das marcas do artista como escritor, Para Clarice Lispector, com candura, ao lado de ser literatura da mais alta qualidade, constitui, como o título do conto explicita, uma belíssima homenagem de Chico Buarque a uma de suas autoras prediletas.

Obra-prima o livro de contos de Chico Buarque de Holanda.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica