Pandemia e pandemônios

Dentro de nós há um universo do qual nasceu nos povos o louvável costume de cada um chamar Deus (mesmo sendo o seu Deus) a tudo aquilo que de melhor ele em si conhece, devotando-lhe primeiramente temor e, talvez até mesmo, amor. Além disso, cada um de nós deseja saber o sentido das coisas, uma orientação para a existência: conhecer-se a si mesmo e conhecer o outro fora de nós, como num filme de Hector Babenco quando uma criança chorando, no meio da selva amazônica por ver sua mãe falecer, pergunta: “Por que existem mosquitos?”. Hoje, muito provavelmente, aquela criança perguntaria por que existem vírus, e quem sabe até poderia questionar: “Por que existem pessoas que padecem pela pobreza enquanto outros esbanjam luxo?”.

 

Ao tornar absoluto um bem qualquer situado no tempo e no espaço – ou seja, na cultura dos povos – identificando-o como Deus ou como a sua vontade, corre-se o risco de definir uma única corrente de pensamento com o Pensamento Inteiro. Basta evocar o caso local no qual o português invasor de Pindorama estabeleceu que a única expressão religiosa a ser admitida pelo império na colônia seria o cristianismo de matriz católica, segundo o mestre Gilberto Freyre. A partir de então, quem não fosse católico era considerado idólatra. Mas antes de 1.500, quando português invasor chegou aqui, ninguém nesta terra era considerado pagão.

 

Nem todas as posições têm a mesma validade para todos, num mundo com origens culturais diversas e, principalmente no tempo presente, dividido em forma desigual de poder de uns sobre outros. O desafio que se apresenta para encontrar sentenças que expressem bem comum entre pessoas e grupos está em buscar conhecer e respeitar a pluralidade das experiências humanas, identificando as causas produtoras de injustiças e de desigualdades, para somente a partir daí estabelecer diálogos respeitosos e verdadeiros, garantidores da manifestação livre das diversas existências no mundo, para estabelecer nexos para formulação de sentenças das quais brotem um sentido de bem comum no qual todos os envolvidos o reconheçam como tal.

 

O grande teólogo Agostinho de Hipona apresenta uma máxima de vital importância: “Na minha vida encontrei muitas pessoas com desejo de enganar os outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado”. Um dos atos antropologicamente mais significativos reside na capacidade e na decisão de confiar o próprio ser e a existência a outra pessoa. Cada um quando crê confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas, e confiar no outro lhes dá a segurança por acreditar na verdade que o outro expressa. É assim que ocorre com avós e pais que transmitem essa segurança para seus netos e netas, filhos e filhas. A razão humana em sua busca de conhecimento e sentido tem que ser apoiada por um diálogo confiante e uma amizade sincera. O Ser Humano é um ser em busca de uma Pessoa em que possa confiar. Recordo sempre quando iniciamos em Fortaleza (2006-2008) um coletivo que reunia vereadores e vereadores dos mais diversos matizes ideológicos e partidários, quando um deles ao final de um de nossos encontros expressou a alegria “pelo clima de confiança que estava se estabelecendo entre os componentes daquele coletivo”.

 

Mas como diz Agostinho, “a fé se não for pensada, não é nada”. O pensamento reflexivo (filosófico) permite discernir, tanto nas concepções de vida como nas culturas, a verdade objetiva. O Brasil, muito antes da chegada do corona-vírus, vinha (e vem) sofrendo por uma pandemia nacional de grande letalidade para a confiança pública: a produção organizada e sistematizada de fakes news, fundadas no ódio. São pandemônios sem escrúpulo localizados na mídia hegemônica, no setor judiciário, no sistema financeiro, em partidos políticos, em associações ditas religiosas, que formam uma rede de ação voltada para torpedear a verdade e com isso desacreditar movimentos sociais, partidos políticos progressistas, lideranças de esquerda, fazendo adoecer a pluralidade de nossa vida democrática.

 

Como lembra o teólogo Tomás de Aquino, “a fé supõe a razão. A fé é de algum modo o exercício do pensamento”. A mentira articulada desses pandemônios visa justamente confundir, desesperançar, fragilizar nossa compreensão e nossa luta democrática. O antídoto para essa pandemia é exercitar nosso pensamento e nossa ação de forma ainda mais rigorosa para retirar do poder esses farsantes.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .