Se me perguntarem o que de pior aconteceu no Brasil em seus quatrocentos e tantos anos de vida, eu diria sem receio: o Ato Institucional assinado pelos ministros militares em abril de 1964. […]
Carlos Heitor Cony, O ato e o fato
Os jornais registraram que o comandante do Exército ameaçou punir os militares da ativa que romperem o silêncio sobre os sessenta anos do golpe de 1964, a outrora tão decantada “revolução de 1964” das ordens do dia castrenses. Por outra parte, o presidente da República desautorizou ato coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos sobre os sexagésimo aniversário do golpe civil-militar. Ontem, a explosão de euforia por parte dos perpetradores e aproveitadores da ruptura constitucional; hoje, não a manifestação do arrependimento, mas a tentativa a ferro e fogo do esquecimento.
Mas, afinal, o que foi o 31 de Março (ou o Primeiro de Abril) de 1964 e por que a sua persistência como assombração na vida política brasileira? De fato, naqueles dias, o Brasil inaugurava uma nova configuração em relação aos golpes, intentonas e intervenções militares que infernizaram a vida política e perturbaram a evolução do estabelecimento constitucional brasileiro, nomeadamente de 1945 até a passagem, nos meados da década de 1980, da presidência da República militar para a presidência da República civil. Em 1964, assenhoreava-se das principais funções de mando do Estado brasileiro uma coalizão autoritário-burocrática que tinha à frente as Forças Armadas e a tecnocracia vinculada à transnacionalização capitalista. Na verdade, o que se considerava o perigo da comunização ou da implantação de uma república sindicalista constituía uma cortina de fumaça para interromper a integração do setor popular aos benefícios da política estatal, o aprofundamento da democracia política e a formação de uma economia com graus acentuados de independência em referência aos países capitalistas centrais.
O experimento autoritário passou por muitas vicissitudes. Do ponto de vista da atividade constituinte, foi responsável pela quase-outorga de uma constituição (1967), pela outorga de outra (1969) e pela edição de dezessete atos institucionais, além de intenso labor legislativo complementar e ordinário, com a edição de 104 atos complementares e um sem-número de decretos-lei. E só depois de longa transição, pactada, é que se voltaria ao Estado de Direito, com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Mesmo assim, a presença dos “militares na política” (a expressão é de Alfred Stepan) permaneceu substantiva nos anos seguintes, arrefecendo a partir do governo Collor, voltando com o governo Temer e intensificando-se no governo Bolsonaro.
Sessenta anos são passados do início de duas décadas marcadas pela dependência-associada da integração econômica, a anulação e a relativização do Estado de Direito, o rompimento dos prospectos democráticos e a supressão dos direitos da cidadania, com a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos, a cristalização de um estilo de fazer política qualificado pela pouca distinção entre os público e o privado, a corrupção, entre outros aspectos, a par de alguns ganhos oriundos da modernização conservadora. Tudo isto faz com que, tomando de empréstimo a imagem drummondiana, que o passado que agora se quer cobrir com um véu espesso de esquecimento seja muito mais do que um quadro doloroso na parede.
Pelo contrário, mais e mais, tal passado que não está morto oprime pesadamente a vida dos vivos. A recidiva autoritária que desembocou no 8 de Janeiro é o retorno do reprimido que veio à tona com o discurso autoritário e a apologética da tortura, a defesa da interferência castrense agora sob a capciosa tese do poder moderador das Forças Armadas, o elogio da violência policial, e o alinhamento com as extrações políticas estrangeiras de extrema-direita. Por tudo isto, é o momento de lembrar, e não de olvidar, para não repetir tragédias como o golpe civil-militar de 1964, com as suas consequências perversas para a tão sofrida vida republicana, democrática e cidadã brasileira Não à-toa, ecoam os versos de Renato Russo, na canção “La Maison Dieu”: “Eu sou a lembrança do terror/[…]/Não, nunca poderemos nos esquecer/Nem devemos perdoar/Eu não anistiei ninguém”.
Filomeno Moraes
Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).