Noeme, minha avó, está a ficar cega. Mulher rústica, do começo do mundo, sempre forte nas decisões e nos erros. Fazia-me caldos ruins, mas grossos, desses que alimentam carne rude. Não teve estudos. Aprendera tudo no livro do mundo e no sofrimento das gentes. Fora acrescida para o lar, a cuidar dos filhos, dos netos, dos enfermos e das plantas e dos bichos. Noeme sempre veio a mim como uma pessoa enorme. Era a mulher mais aumentada do mundo, com suas mãos agigantadas de resolver tudo. Não havia nada que Noeme não empenhasse resolução. Desde o bicho de pé, da goteira da telha talhada até as febres crepusculares, Noeme curava-me dos medos e dos males do estômago. Quando as enfermidades costuravam meu corpo, ela fazia todo tipo chá, lambedor, sopas e caldos e depurava-me dos males com sua ciência ancestral. De olhar austero e um jeito agreste de zelar, exigia-me a benção matutina. Respeita os teus velhos, assevera-me. Não te ausentas com vagabundos, cuidado com a friagem da noite, olha a terra quente, não vais gripar! – repetia-me com sua voz jurídica.
A casa pobre de Noeme tinha um quintal muito rico. No fundo, havia dunas e pé de murici, troncos e folhas de castanholas alimentavam sombras enormes. Dezenas de cajueiros emprestavam seus galhos e troncos para as redes dos homens agrestes deitarem seu sono ruidoso depois das lidas da roça. Também coqueiros e carnaubeiras, galinhas, patos e cachorros refaziam a geografia particular daquele microcosmo rural. Nas tardes azuladas, meninos caçavam pássaros, reinavam brincadeiras e rixas. Éramos muitos. Dezenas de crianças a pelejar pequenas aventuras naquele limitado mas infinito território de Noeme. As cercas de arames que diziam as fronteiras com o quintal alheio não nos impediam de roubar os muricis, cajus e mesmo as galinhas do território vizinho. Não precisávamos de frutas, nem de galinhas, invadíamos as fronteiras proibidas apenas pela alegria da algazarra, da aventura adolescente de contrariar uma regra.
No quintal de Noeme, a vida excedia-se.
Minha avó foi dona de extensa terra. Léguas de morro e árvores. Mas é analfabeta e não entendia das burocracias do mundo. Restou hoje apenas a modesta casa, já modificada pelo tempo e pela modernidade, e um pedaço de sua Macondo de outrora.
Hoje, minha avó está a ficar cega.
Perdera a claridade das antigas lareiras de barro, perdera o amarelo fosco das lenhas e das brasas. Está velha e assim está na grande noite de seus olhos: escuro. Já não prepara o café matinal para os homens da roça. Nem adoça lambedor de aroeira, malva e jatobá. Não colhe as verduras no seu giral, nem caça galinhas para o almoço de domingo. Noeme tinha o hábito de deixar três garrafas cheias com café na janela de sua casa para os viventes, estranhos ou conhecidos, que por lá passassem. Já não é mais assim. Também já não pode mais acalentar os netos, a contar-lhes prosa antiga de fantasmas e lobisomem, nem lhes dar banho de água de aroeira, nem preparar caldo de carne com ovo de galinha caipira.
Agora Noeme enxerga apenas para dentro. Caduca. Fala coisas ilegíveis. Nos idos dos seus 93 anos, conversa com seus fantasmas e prepara o seu quintal metafísico. Eu não sei se o céu existe. Mas, se existir, o céu de Noeme terá castanholas, cajueiros, galinhas e patos, um alpendre cheio de netos para ela curar-lhes os quebrantos, e gente a lhe pedir reza e café.
E então, para toda a eternidade, ela vai deitar-se em sua alcova sabendo que, no dia seguinte, nos primeiros poros da aurora, acordará cedo para preparar as boias dos trabalhadores. E depois o café das gentes. E cuidar dos netos.
E será feliz assim.