Ódio e nojo, por Filomeno Moraes

O jornalista cearense Edmar Morel, no seu libelo “O golpe começou em Washington” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965), conta, em tom de blague, que o cronista social Ibrahim Sued foi um dos primeiros a denunciar os desmandos do golpe civil-militar de 1964. Quando, nos primeiros dias do governo do general Castello Branco, suprimiram-se os vinhos no Alvorada, Ibrahim bradou: “Não foi para isto que fizemos a revolução. O vinho é uma necessidade nos palácios”.

Transcorrido o calvário que foi a ditadura (calvário tal existente não pela supressão dos vinhos!), advinda a transição “lenta, gradual e segura”, realizada a Constituinte de 1987-1988, o Brasil pareceu encontrar os trilhos civilizatórios, justificando-se a esperança de que, enfim, a democracia política se consolidaria por aqui. Por oportuno, saliente-se que, apesar dos pesares, dos muitos déficits de qualidade democrática, constrói-se um experimento democrático com índices de razoabilidade. No momento, dá-se mais um processo eleitoral presidencial da rotina iniciada em 1989 e, vai senão quando, a campanha eleitoral revoca fantasmas, espectros e assombrações que se consideravam esconjurados ou subsistentes apenas no discurso de viúvas, sem esperança, do autoritarismo.

De fato, a atual campanha eleitoral faz pensar que o sangue, suor, lágrimas e trabalho de muitos foi em vão. Para ficar apenas com alguns exemplos de resistência no plano da resistência político-institucional, de que valeram os sacrifícios de Mário Covas e José Martins Rodrigues, vítimas da morte política pelo Ato Institucional nº 5, de 1968? E a prisão de Chico Pinto, condenado em desacordo com a imunidade da opinião e palavras própria dos parlamentares? E o sacrifício de Alencar Furtado, por defender a inviolabilidade dos direitos da pessoa para que não houvesse “lares em prantos; filhos órfãos de pais vivos — quem sabe — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe”; para que não houvesse “esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez”. Para que serviu a oratória candente de Paulo Brossard a verberar a desordem jurídica promovida pela ditadura, as andanças de Teotônio Vilella e as lutas de Cristina Tavares? E a luta de Raymundo Faoro, à frente da Ordem dos Advogados do Brasil, para a restauração do “habeas corpus”? O que dizer da autoimolação de Tancredo Neves, para evitar ruídos na transferência do governo militar para o governo civil?

Agora, o que poderia ser mais uma manifestação folclórica de busca de apoio eleitoral vira desafio real à democracia e ao Estado de Direito, promovendo-se a apologia da tortura e da violência policial, a exaltação da ditadura, o ataque aos direitos humanos, enfim, a entronização da nostalgia da barbárie e a negação da escolha civilizatória. Tudo com o respaldo consciente, inconsciente ou oportunista de setores das elites econômicas, de estratos das classes médias “soi-disant” ilustradas, de camadas das classes subalternas, brutalizadas por diversas manifestações de violência quotidiana.

No momento, a evolução do processo político-eleitoral é preocupante, com a emergência de perspectivas medonhas sobre o futuro do país, com as expectativas de recrudescimento das tendências a uma “democracia boçal. Não é meramente retórico o risco de o país atolar-se em uma situação frágil e incerta, em que democracia representativa não seja capaz de processar as demandas políticas e sociais de uma sociedade complexa, carente e dinâmica. Tudo, culminando-se com a emergência de pregoeiros de soluções fáceis e rápidas, porém, erradas.

Num diálogo às avessas com a observação em torno do cronista social, que não foi para isso que se fez a democratização pode bradar-se agora, num gesto de resistência cívica, democrática e republicana. Como proclamou o velho timoneiro Ulysses Guimaraes, por ocasião da promulgação da Constituição Federal, no dia 5 de outubro de 1988: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. Ódio e nojo também à ressurreição da ditadura pode proclamar o eleitorado na encruzilhada institucional em que o Brasil se encontra.

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