O USO DA RAZÃO

As tecnologias digitais multiplicaram as comunicações. Muito mais limitado era o alcance do invento de Johann Gutenberg (1398 – 1468), que ensejou o enciclopedismo dos iluministas do século das luzes; panfletos; e jornais que contribuíram para revoluções. A era do rádio contribuiu para uma onda de ditaduras (Joseph S. Nye Jr., 1937 – vivo, na obra “O paradoxo do poder americano”). Muito maior é o impacto das novas tecnologias de informação.

Umberto Eco (1932 – 1916) viu a internet, tribuna de alcance universal facultada aos menos qualificados, como algo lamentável. A vulgarização de teorias tende transforma-las em versões aviltadas. A aldeia global descrita por Herbert Marshall McLuhan (1911 – 1980) potencializou os conflitos relacionados com as paixões despertadas pela difusão de informações mal digeridas. Livre pensar não é só pensar, como queria Millôr Fernandes (1927 – 2012). É necessário o uso de categorias teóricas bem demarcadas; vigilância epistemológica; seleção e análise de informações; e um mínimo de autocrítica em face das próprias paixões, que Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) aludiu como necessidade de um certo distanciamento da montanha para melhor contempla-la.

Isaac Newton (1643 – 1727) atribuiu as próprias realizações no campo da ciência ao fato de pisar nos ombros de gigantes, isto é, ter sido beneficiado por realizações de pesquisadores que o antecederam. Não é possível desenvolver ideias complexas sem fazer uso do estoque de conhecimentos válidos. Pensar e expressar-se requer a ausência de censura; domínio de ilusões comuns no titanismo, traço romântico que afasta da realidade. É preciso ter independência quanto a ortodoxias, autores consagrados e movimentos culturais, políticos e confessionais.

O homem cordial (Sérgio B. de Holanda, 1902 – 1982) respeita melindres. É a tradição de não discutir religião, futebol e política, assuntos havidos como explosivos. Explosivas, porém, são pessoas, não assuntos. A cultura avessa ao diálogo verdadeiro, que é interesse em conhecer pensamentos diferentes e submeter as próprias ideias ao exame de quem se orienta por critérios distintos dos seus. O falso diálogo é “cordial”. Não discorda. Priva a contribuição com informação ou ideia discrepante. Professoral, descortês e presunçoso é a qualificação dada pela tradição do homem “cordial” a quem quebra o costume do falso diálogo. A exacerbação de ânimos agravou a “cordialidade” melindrosa.

Analisar e contribuir com informação divergente não é ofensa, seja certa ou não a contribuição. Exame dos fatos; análise epistemológica; validação segundo as teorias do conhecimento; buscar validação pelo verificacionismo não é descortesia. Dizer que o uso da categoria teórica “classe social” deve esclarecer se segue a dicotômica oprimidos e opressores, valendo-se da origem da renda, da tradição marxista; ou se invoca quantidade de renda (posição de mercado) da teoria de estratificação weberiana. Quem fala em “capitalismo” precisa esclarecer se está aludindo a teoria do modo de produção ou meramente a um sentimento cúpido. “Capitalismo de Estado”, por exemplo, não é capitalismo. Nem do ponto de vista do modo de produção capitalista, nem como simples sentimento argentário, mas uma formação econômica e social nova, algo semelhante ao velho “modo de produção asiático”, das primeiras organizações estatais, quando o Estado controlava a economia, no absolutismo. Conceitos indeterminados também podem produzir erros. O que é “Justiça social”? E democracia? A cidadania precisa do rigor metódico para discernir a realidade e conter paixões. Não é agressão dizer isso.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.