O teste de chama da democracia brasileira, por Filomeno Moraes

Na sua longa e arriscada viagem de volta da guerra, Ulisses teve de enfrentar, entre outras, a prova que já levara à ruína tantos navegantes: atravessar o estreito em que, de um lado, Cila, um monstro com doze pernas e seis cabeças, cada uma com três fileiras de dentes, habitava uma gruta cavada no rochedo, e, no outro lado, perto de Cila, estava Caribde, monstro das profundezas marinhas, que, três vezes ao dia, sorvia e vomitava a água do mar.

A comparação com o dilema em que se vê a pouco mais do que trintona democracia brasileira é pertinente. Como sabido, a eleição presidencial tem centralidade máxima no desenvolvimento do processo político-eleitoral nacional. Historicamente, por todo o período republicano, foi causa de crises, de disrupções e de mal-estar institucional, só se tornando rotina – sem perder tal centralidade – a partir das eleições que se deram sob a ordem constitucional inaugurada em 1988, quando o país configura, a par de outros indicadores, uma democracia com eleições livres, justas e frequentes. Todavia, a eleição presidencial deste ano está marcada por índices de violência real e simbólica jamais observados desde o início do experimento democrático em desenvolvimento. Do esfaqueamento real do candidato Jair Bolsonaro ao esfaqueamento não menos danoso de princípios éticos, jurídicos e políticos pelo discurso e prática da violência, do preconceito e do ódio, do desmoronar do centro do espectro político à retórica sedutora, mas vã, de propostas rápidas e fáceis para problemas complexos e difíceis, do desmantelamento do sistema político e da maior fragmentação partidária jamais vista numa democracia, o balanço político apresenta resultados preocupantes e desesperanças quanto ao futuro político do país.

Evidentemente, o dilema a que a fortuna política leva os eleitores neste 28 de outubro – o de decidir entre uma candidatura péssima, pelo despreparo, retrocesso civilizatório, ressureição de espectros que se já se julgavam esconjurado, e outra ruim, por conta de ser originária de um partido que, com quase uma quinzena de anos no poder federal, marcou-se por muitos equívocos políticos, decisões temerárias e descaso com os valores republicanos, além da arrogância própria do despotismo – é menos problemática do que as perspectivas do dia seguinte. Não há dúvida de que, utilitariamente, a decisão deve ser a de votar no candidato que não afronta os valores democráticos.

Na filosofia política, há uma questão recorrente, qual seja a de que o povo erra ou não nas suas escolhas eleitorais. Filósofo político liberal do século XVIII (época em que ser liberal-político levava à prisão e à morte), cujas considerações, em muitos aspectos, interpela agora o cérebro dos vivos, Montesquieu dizia que “cada um é capaz (…) de saber, em geral, se aquele que escolhe é mais esclarecido do que a maioria dos outros”. Assim, recorrendo a uma constatação já antiga de que, no Brasil, o povo é melhor do que as suas elites, cumpre aos democratas aceitar a decisão popular, mesmo que seja contrária aos cálculos políticos particulares. E, se já uma lição a tirar do processo eleitoral de 2018 é a de que há uma profunda insatisfação com o estilo de fazer política prevalecente no país, demonstrada pesadamente no verdadeiro tsunami que apeou da zona de conforto líderes e partidos. Não se pode dizer que os eleitos serão melhores, mas a admoestação foi de que os “carcomidos” deveriam aposentar-se. O recado foi dado. Agora, é organizar a resistência contra quaisquer atentados contra os valores constitucionais e civilizacionais, democráticos e republicanos.

Esquivando-se de Caribde, Ulisses enfrentou Cila e, afinal, saiu vitorioso. No entanto, devorados pelo monstro, perdeu seis dos seus companheiros de viagem, valiosos marujos. Espera-se que, valendo a metáfora, que Caribde e Cila sejam vencidos, ou seja, a institucionalidade brasileira, tão duramente conquistada a partir da Constituição de 1988, seja capaz de evitar o retrocesso e de prover o progresso. Conseguirá? A ver.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).