O sono dos justos, por ALDER TEIXEIRA

Em verdade, ficamos amigos não faz muitos anos. Bibliófilos, éramos assíduos nos espaços da Livraria Cultura, de tal forma que trocávamos, vez e outra, algumas palavras, uma opinião sobre um livro, um comentário em torno de um autor e outro, e, não raro, sobre filmes, de que, no que logo descobriria ser uma das marcas do seu extraordinário caráter, a modéstia espontânea, dizia saber pouco, quando sabia muito.

Assim, passaram-se meses, anos talvez, até que nos apresentássemos amiúde, como se já não soubéssemos tanto um do outro, a pilha de livros ao pé do sofá, como um cão de estimação. Livros que folheava com a serenidade de um padre do interior, a buscar na Bíblia o versículo exato, a barriga proeminente a servir de apoio a volumes de diferentes tamanhos.

Quis a vida, por força das afinidades, que um dia largássemos os livros a fim de conversar, sobre literatura, cinema, política, e da conversa, assim improvisada, nasceu um tipo de cumplicidade intelectual, admiradores da cultura russa e incorrigíveis apaixonados por Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, escritores sobre cujas obras tecíamos quase a uma só voz elogios rasgados, tomados de encanto pela literatura desses monstros sagrados do romance e do conto universais.

Com o tempo, a amizade foi se estreitando e não havia semana que não nos víssemos, que não sentássemos para prosear, que não nos presenteássemos, com livros, invariavelmente  —  as dedicatórias como a revelar o que existe de essencial na boa convivência entre os homens que se permitem tornar amigos.

Manhã, ainda cedo, recebo do poeta Luciano Maia a notícia dolorosa: Sérgio Gomes de Matos, médico pneumologista de renome, orador de primeira, companheiro das reuniões de segunda e sexta-feira na Cultura, o homem de uma dignidade incomum, morre de morte súbita, o coração generoso silenciando o bater de tantos anos.

“Mas como pode, assim, sem nos dizer que vai?!”

Perde o Ceará um dos seus homens nobres, no sentido mais preciso e definitivo da nobreza. Perdemos nós, amantes insaciáveis dos livros, frequentadores infalíveis da Livraria Cultura e de outras livrarias, a sabedoria de um intelectual de cepa, a convivência inesquecível de um homem bom, de índole generosa, de sorriso largo, de coração e braços abertos, sempre.

Não faz muito, em meio aos livros com que gostava de mimar os verdadeiros amigos, deu-me, dessa vez a pedidos, um exemplar da Revista da Acemes, edição de número 2/2018, em que se encontra o seu belíssimo discurso por ocasião da posse da diretoria da academia cearense de medicina para o biênio 2018/2019.

Que página memorável, que exemplar irretocável do bem falar em público, que obra-prima do panegírico a outro grande médico e irretocável personalidade do Ceará, o neurocirurgião Djacir Gurgel de Figueiredo, que assumia naquela noite a presidência da Academia Cearense de Medicina.

Culto, sem precisar mostrar aos outros o que já era uma evidência, falava dos mais diferentes assuntos com a propriedade de um especialista, fosse literatura, relações exteriores, de que era mestre, ou amenidades, o jeito despretensioso de revelar-se em dia com a cidade, o estado, o país, o mundo.

Do estilo de Gustave Flaubert à filosofia de Sartre, do marxismo à sinfonia de Bach, do futebol (Fluminense de quatro costados) à guerra da Crimeia, dos Romanóv à Raspútin, nada que viesse à tona, entre um café e outro, era estranho ao conhecimento enciclopédico de Sérgio Gomes de Matos.

No seu discurso, há pouco referido, cita Renan, como em projeção: “Sonho por uma humanidade melhor, e mais feliz, sem miséria, sem violência, sem ódio  —  dever para com o próximo, a sociedade, a pátria, no desempenho honesto e dedicado de sua profissão”. E Goethe, “Não se cobiçam estrelas, apraz-nos seu esplendor”.

Para arrematar, premonitório, como é próprio dos gênios, ecoando Voltaire: “É tempo de recolher, os imortais também dormem”.

Dorme bem, Sérgio, que é sono dos justos e dos abençoados o sono que dormes desde essa triste manhã.

 

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica