O rosto triste da modernidade, por HQ

Em 1909, o pintor espanhol Pablo Picasso e o pintor francês Georges Braque iniciaram, em Paris, o cubismo – um movimento artístico de vanguardaUm estilo de pintura (e de escultura) que constitui a segunda grande ruptura na evolução, não somente das artes visíveis ocidentais, mas nas formas de representação e de percepção. A primeira ruptura foi o impressionismo, que renunciou, em 1863, cinco séculos depois, ao realismo e à perspectiva – a pintura dos olhos. O cubismo, adentrando as contribuções de Paul Cézanne (morto em 1906), realizou uma cisão ainda mais radical.

A pintura deixou de ser apenas ‘’o prazer dos sentidos’’, e se tornou uma ação intelectual. Esperava do espectador uma colaboração forte, e introduziu o tempo na pintura – a pintura cubista mostra os vários lados do objeto, como uma sequência simultânea de momentos na realdade. As consequências desse movimento são excepcionais: praticamente toda a arte do século XX, direta ou indiretamente é devida ao cubismo.

Uma das carateristicas do cubismo é por fim à “seduçao” do público. Nada de cenas históricas, nem retratos, nem nus, nada de “interessante” nos sujeitos: apresenta, quase somente, objetos da vida cotidiana. O público não deve ter interesse no conteúdo, mas no modo de pintar. Deve compreender e analizar, não gozar com os sentidos, nem identificar-se com o conteúdo. A insignificância do conteúdo combina-se, principalmente na primeira fase do cubismo, com a fase “analitica”, com cores e sombras tristes, como o verde, o cinza e o marrom.

Mas tem suas exceçõesUma delas é o retrato de Ambroise Vollard, de Picasso, (1910). Um importante dono de galeria e colecionador (1865-1939), que organizou a primeira exposição de Picasso e contribuiu muito para a celebridade de Cézanne. Existem retratos dele feitos por artistas como Auguste Renoir, Cézanne e Bonnet. O retrato dele, obra de Picasso, é bem diferente. Não existem relatos se ele gostou ou não, não se sabe sua opinião.

Mas, este quadro parece dizer muitas coisas sobre a modernidade.

Quem sabe são coisas que Picasso nem queria dizer, pelo menos não coscientemente. Esta é uma das grandes características das obras de arte – poder exprimir visões que vão além das intenções conscientes dos artistas. No entanto, Picasso era também um agudo observador da sociedade. Talvez a tenha realizado com clara consciência.

Não é algo essencial para estabelecer o seguinte: ficamos com a impressão de que a cara da pessoa do retrato (e pouco importa quem seja) foi destruída. A técnica do cubismo, a fragmentação da imagem em elementos geométricos, no caso de objetos, não parece chocante. Aqui, a mesma técnica aparece impactante: o rosto humano se mostra horrível quando é geometrizado. Nada de vida ou orgânico, é naturalmente geométrico.

 

Tal geometrização causa o efeito de uma violência, de algo totalmente contrário à sua essência, à sua natureza, à sua dignidade.

Ao mesmo tempo, a geometrização, a linha direta é a base da técnica moderna. Quanto mais o mundo se tornou “moderno” e “desencantado”, mais ainda ele se tornou geométrico. A forma mais visível desta submissão violenta do corpo do homem a rígidas estruturas lineares é a linha de montagem nas fábricas que se desenvolvia naqueles anos.

A face parece triste, em sinal de dor pela fragmentação contrária a sua natureza e elaborada para a modernidade. Indo adiante, poderia-se imaginar que um carro ou um bonde atropelou sua cara – e foi justamente nesses anos que estes meios de trasporte se difundiram e fizeram as primeiras vitimas. Poderíamos ver neste retrato todas as ameaças que a modernidade, as suas tecnologias e a sua ciência trazem para o homem. Ele parece encontrar-se num mecanismo que o devora – como Charlie Chaplin, no filme Tempos modernos.

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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