NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO 21 vivemos uma grande transformação política ao colocarmos pela primeira vez no poder central do nosso país uma coligação comandada por um partido de esquerda – Partido dos Trabalhadores (PT) – nascido das bases do sindicalismo metalúrgico da Região do ABCD paulista o qual contemplava, conforme estudos do sociólogo Chico de Oliveira, grande número de trabalhadores imigrantes do Nordeste do Brasil e de Minas Gerais. Coube ao PT dar início à elaboração de um modelo de estado de bem-estar fundado na economia social, no desenvolvimento sustentado e na democracia participativa, durante o período dos governos LULA (2003-2010) e Dilma (2011-2014). Reeleita, a presidenta Dilma foi impossibilitada de governar desde os primeiros atos de 2015, até que o Golpe de 2016 lhe assaltou o poder, interrompendo nossa caminhada socialdemocrata em andamento.
A redemocratização formal do Brasil com a queda da ditadura (1964-1985) deve muito à iniciativa daquele movimento sindical questionador da incapacidade do regime em dar resposta à crise econômica na qual o país havia afundado em decorrência da incompetência e da corrução dos governos militares. Sob a liderança do pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva surgiram as primeiras greves do ABCD, num contexto de arrocho salarial e de elevada dívida externa brasileira, que criaramo ambiente mobilizador das forças progressistas pela retomada da democracia no Brasil. Além da criação do PT, esse movimento trabalhista deu vida à Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma central nacional, territorial e setorial, que chegou a agregar a mais importante confederação dos sindicatos rurais, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (Contag).
A primeira grande inovação que se deu no âmbito do Ministério da Saúde do primeiro governo Lula estabeleceu a organização de uma política nacional de atenção às urgências, *com a implantação de novos componentes*, como os SERVIÇOS DE ATENDIMENTO MÓVEL DE URGÊNCIA (SAMU) e as UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO (UPA). Para a comunidade científica, a decisão de iniciar a implantação da política de saúde pela fase pré-hospitalar foi muito acertada já que as experiências nacionais e internacionais demonstram o impacto positivo desse atendimento. UPA e SAMU fazem parte, portanto, do conjunto dos serviços de urgência 24 horas da Rede de Atenção de Urgências.
As UPAs são o principal componente fixo de urgência pré-hospitalar. São unidades intermediárias entre a atenção primária e as emergências hospitalares. Classificam-se em três diferentes portes, de acordo com a população referenciada, a área física, o número de leitos disponíveis, a gestão de pessoas e a capacidade de atender. Compõem a estrutura de atendimento de uma UPA o serviço policlínico, pronto-atendimento, pronto-socorro especializado, pronto-socorro geral.
Segundo estudo de Gysele O’Dwyer “et alii” (Revista Saúde Pública. 2017;51:125) outra grande novidade introduzida pelos governos do PT foram as edições de portarias pelos ministros da Saúde ao longo dos anos prevendo UPA estrategicamente integradas em redes de atenção às urgências. A necessária coexistência com um SAMU e a obrigatoriedade de expandir a cobertura de atenção primária através da Estratégia Saúde da Família (ESF) são condicionalidades que procuraram fortalecer a visão de rede e impelir os gestores a investir em outros componentes da rede de urgências. Assim demarca-se a pretendida resolutividade da UPA, diferenciando-se dos antigos prontos socorros, produtores de “consultas de emergência pouco resolutivas”.
Antes das UPA, havia uma rede para o pré-hospitalar fixo não regulada pelo Estado que cumpria seu papel sem avaliação sistemática. Na maioria das vezes, essas unidades não eram expressivas em termos estruturais, não classificavam risco e produziam consultas pouco resolutivas. A política federal com regras para definição estrutural foram indutores para UPA, priorizada na agenda governamental por uma confluência de fatores histórico-estruturais, político-institucionais e conjunturais.
A principal característica da UPA é a adequação da sua estrutura, o conforto das instalações e a adequação dos equipamentos. Pela primeira vez, um componente do Sistema Único de Saúde (SUS) foi proposto com grande exigência nos critérios estruturais. Esse foi um diferencial expressivo, em relação ao parque de prontos-socorros já existente antes da UPA. Evoluiu do modelo de pronto-socorro que não tinha resolutividade, espaço físico, equipe qualificada, material, medicamento.
Até 2016, essa inovação política de saúde dos governos do PT, a presidenta Dilma Rousseff entregou ao povo brasileiro *620 UPA’s construídas em todos os estados do Brasil*. Logicamente, caso não houvesse ocorrido o Golpe, essa política de saúde teria avançado, uma vez que com o “Programa Mais Médicos”, até a última gestão da presidenta Dilma, o Brasil contava com 14.600 médicos cubanos, espalhados pelos interiores brasileiros a cuidar da saúde primária de nosso povo, robustecendo a Rede de Saúde Pública.
Na análise do discurso de Bolsonaro à qual nos dedicamos nos nossos últimos artigos, não vamos encontrar palavras, nem pensamentos, nem elaborações estratégicas como UPA, SAMU, SUS, SAÚDE DA FAMÍLIA, entre outras. Recentemente ele afirmou enfaticamente em relação à pandemia: “Vamos enfrentar o vírus!”. Mas não explicitou quem são os sujeitos da frase. Vamos quem? Será ele com seus filhos Zeros que irão para as fronteiras do combate, expor suas vidas físicas e psicológicas, nos hospitais, nas enfermarias, nos ambulatórios, nas uti’s, nas ambulâncias superlotadas? Como já tivemos oportunidade de constatar, ele se utiliza de várias máscaras (persona) e de vários discursos para enganar o público ao qual se dirige.
No final do ano passado, por meio da portaria 2979, o governo Bolsonaro lançou o Previne Brasil, um verdadeiro golpe no sistema público de saúde, visando realocar recursos que vinham sendo empregados na Atenção Básica de Saúde. Segundo o economista Francisco Funcia, as bases anunciadas pela portaria colocam em risco os princípios e diretrizes constitucionais da universalidade, integralidade e equidade. E com as projeções sobre os efeitos perversos da PEC DA MORTE (do teto dos gastos públicos) para o financiamento do SUS até 2036 caindo de 1,7% do PIB para 1,2%, com o agravante da recessão histórica do ano de 2019 (primeiro ano de Bolsonaro) somada à crise da pandemia do corona vírus, é mister que o debate sobre a saúde pública seja retomado urgentemente pelo Congresso Nacional e Movimentos Sociais, para que se possa ter garantidos os direitos fundamentais da pessoa humana entre os quais a saúde é central. Afinal não se combate pandemia com armas de fogo, mas com políticas efetivas de saúde.