CONQUISTA – Miguel Torga.
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
A teoria e a prática decolonial surgem do escândalo e do horror diante do mundo de morte promovido pela modernidade/colonialidade. Diante da crise do padrão civilizador moderno e do colapso estrutural dos seus modelos econômicos, o capitalismo e o socialismo, a indignação política antisistêmica pode ser um dos elementos alimentadores de novos horizontes emancipatórios. Diante do mundo de risco e de morte, a indignação política antisistêmica, entre outras possibilidades, pode permitir a eclosão de movimentos de transformações conjunturais e estruturais potencializadoras da indução de um giro decolonial pela construção de um mundo transmoderno e pluriversal.
O Brasil, que foi inserido violentamente no sistema-mundo moderno/colonial desde a invasão portuguesa em 1500, acaba, nas últimas Eleições Presidenciais de 2022, de derrotar um governo que vinha promovendo a fascistização do Estado através da sua militarização, da destruição do Estado de Direito, do sucateamento das instituições responsáveis por políticas públicas e sociais voltadas para o combate às mazelas produzidas pelo mercado e promovendo a fascistização da sociedade por meio de apoio a ações milicianas, do estímulo de atividades antidemocráticas, golpistas e terroristas. No suporte a tudo isso, tivemos uma política econômica e monetária voltada para o fortalecimento do capital financeiro especulativo e rentista, mas não foi o suficiente para fazer eclodir uma indignação política antisistêmica, nem mesmo uma ampla mobilização de ruas com força para conseguir a cassação de Bolsonaro.
A indignação gerada no Brasil contra o Governo Bolsonaro foi uma indignação moral contra a sua agenda de costumes, contra a sua política genocida no tratamento da pandemia no país e contra sua postura de se colocar a favor de um golpe militar que o elevasse à condição de tirano permanente no poder. Foi uma indignação em defesa do capitalismo e de seu ordenamento jurídico. Bolsonaro, ao longo de quatro anos, manteve a oposição a reboque de sua agenda e na defensiva.
A indignação moral no Brasil foi conscientemente articulada pela oposição, como se o problema tratasse apenas da presença de Bolsonaro no comando da administração do país, e não da nossa herança colonial e a ordem capitalista, esta representada simbolicamente pela defesa da democracia. Portanto, o movimento político que alimentou a disputa política presidencial em 2022, que unificou metade dos eleitores brasileiros, foi mais do que em torno do Lula e do PT, foi em defesa da segurança da ordem capitalista. É claro que, dentro da conjuntura vivida pelo país, tratou-se de um movimento muito importante para barrar a fascistização do Estado e da sociedade, bem como para recuperar as instituições do Estado e fortalecer suas políticas públicas. Esses desafios vão precisar de uma sociedade civil ativa que pressione o governo e se confronte com o mercado.
A missão do Governo Lula: i – fortalecimento da democracia; ii – reorganizar o Estado, potencializando-o para realização de uma política de assistência social, de garantias de direitos individuais e coletivos, de políticas públicas e da diversidade; iii – e defesa do nosso patrimônio natural, são ações importantes para manutenção sistêmica da ordem e da possibilidade de melhoria das condições de vida da maior parte da população do país. Todavia, não há consenso em torno de todos esses desafios. Tornar o Estado responsável pela compensação das mazelas sociais provocadas pelo mercado só dentro dos limites dos gastos públicos, da chamada política de responsabilidade fiscal ou de austeridade. O mercado quer e impõe que o governo seja normatizado e aja em função dos seus interesses privados, e não da promoção da vida e da preservação da natureza. A montagem da equipe econômica do Governo Lula e de parte de seu ministério revela muito a pressão do mercado sobre a modulação da ação do mandato de Lula.
A democracia defendida pela oposição ao governo fascistizante de Bolsonaro, defendida até pelo setor financeiro por meio de uma carta pública, é a democracia como defesa da ordem e do império do mercado sobre a vida, é a democracia como regra do jogo. Trata-se de uma democracia formal, sem fundamentos em princípios éticos de defesa da vida, de visões de futuro ou compromissos com um destino emancipador para o povo brasileiro. Com as políticas de austeridade, o combate à miséria, ao empobrecimento, aos desmandos ambientais e todas as mazelas sociais produzidas pelo mercado só podem ser tratadas depois do atendimento aos interesses de mercado, mas sempre de forma paliativa.
Se a direita fascista, diante da crise do processo civilizador moderno/colonial, colocou-se contra a ordem sistêmica, como fez Bolsonaro e seus aliados, defendendo que a liberdade não pode ser eliminada em nome da igualdade, caindo numa contradição performativa, ao defender a liberdade eliminando a liberdade. A luta contra o bolsonarismo, ainda em curso e com desdobramentos imprevisíveis, limitou-se à defesa da ordem sistêmica e à defesa de administrar o capitalismo de forma a promover três refeições diárias para os miseráveis e os empobrecidos pelo mercado. Lula, na sua campanha, não prometeu nada além da volta ao passado, como se o passado fosse a única promessa possível.
A esperança que se fala no Brasil é desprovida de horizonte de futuro, fundamenta-se e ancora-se no passado, trata-se de uma esperança às avessas, que esquece o que foi o governo Lula e o que a ele se sucedeu. A esperança alimentada pela esquerda é uma esperança na manutenção da ordem sistêmica num ciclo vicioso de disputa do poder pelo poder. Alimentado pela ideologia do fim da história, o capitalismo se tornou de direita e de esquerda e suas variações. Sendo assim, a esperança só pode ser referenciada num passado que possa ser mostrado como positivo ou negativo por meio de narrativas construídas em torno da disputa pelo poder.
A hegemonia da ideologia do fim da história é a consolidação do neoliberalismo como razão única de normatização da sociabilidade no planeta e do fazer político como ação pragmática na qual os indivíduos devem sacrificar a sua consciência crítica em função da conveniência geral. No pragmatismo, a democracia, como regra do jogo, separa o espaço político do espaço ético fazendo imperar a disputa do poder pelo poder. As ações políticas e as medidas institucionais do governo não são avaliadas em função de sua legitimidade, em relação a algum valor ético ou valorização da vida, mas em função da governabilidade. É nos espaços do pragmatismo que se deve fazer surgir as sobras para amenizar os conflitos que possam levar a desgastes ou rupturas e os acordos para manutenção do poder.
No jogo do pragmatismo, Lula soube usar muito bem o seu capital político e a sua legitimidade para montar um ministério, que mesmo condicionado, em parte, pelos humores do mercado, é um ministério politicamente representativo, tecnicamente experiente e respeitável. Com o novo ministério, avançamos na representação da diversidade étnica, de gênero e territorial. A presença de onze ministérios comandados por mulheres e outras duas mulheres indicadas para dirigir a CEF e o BB são conquistas importantes, mas dentro da manutenção da ordem capitalista. Nesse contexto, ganha destaque, como novidade, a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Não podemos ter dúvidas de que teremos um governo dentro da ordem democrática burguesa em substituição a um fascista que estava vampirizando o país.
Todavia, nesse horizonte político preso à conjuntura e ao ciclo de reprodução do sistema-mundo moderno/colonial, não há possibilidade de combate à desigualdade e à concentração de renda, de combate estrutural à pobreza, não há possibilidade emancipatória porque não se enfrenta as causas, não se enfrenta as contradições e a perversidade do mercado. Assim como para a religião judaica cristã a conquista da vida boa e eterna implica sacrifício presente para voltar ao passado, ou seja, ao paraíso, de onde o homem e a mulher foram expulsos por terem pecados. Na ideologia do fim da história também não há futuro, o inferno capitalista é a única realidade possível, esperança significa voltar ao passado de uma administração capitalista menos ruim do que a presente, como se a mesma conjuntura que a permitiu também voltasse. O PT e Lula representam bem essa ilusão.
Enquanto a volta à promessa de vida eterna cristã significa escolher entre o céu e o inferno, o que implica um julgamento ético no purgatório, a volta ao passado como esperança do capitalismo não oferece escolhas, não tem julgamento ético. Trata-se de um ciclo histórico dualista entre volta ao passado, onde se era feliz, e negação do presente, onde se é triste. Todavia, cabe uma pergunta: o preço a pagar por essa volta à “felicidade” com Lula implica ter que passar por algum tipo de golpista Temer ou fascista Bolsonaro? É uma possibilidade, mas o mais provável é que, assim como Bolsonaro se ancorou no passado de corrupção aloprada praticada durante os governos petistas para conquistar o poder, o novo Governo Lula, ao final de seu mandato, vai se ancorar no medo da volta ao bolsonarismo para manter o PT no poder, pois na ideologia do fim da história é o medo do pior que orienta o comportamento e as escolhas dos eleitores e eleitoras.
Por isso é que, na disputa do poder pelo poder, a referência é sempre o passado, e não o futuro. Não há um horizonte de futuro emancipador, o medo do pior sempre remente o olhar para as experiências passadas. Como o capitalismo é de direita e de esquerda, ambos agem de forma pragmática para evitar que na sociedade se consolidem e se fortaleçam lideranças, ideias e movimentos que defendam o fim do capitalismo. Veja o que aconteceu com o MST, deixou de ser um movimento de ocupação de terra e de conflito permanente com o latifúndio para ser um agende do mercado produzindo alimento orgânico. A esta mudança o MST chama de “reforma agrária popular” em substituição ao “ocupar, resistir e produzir”.
Diante desse cenário, a indignação política antisistêmica pode ser uma possibilidade de interrupção do eterno retorno. Mas saber qual pode ser o fator indutor da eclosão de um processo de indignação política antisistêmica é algo imprevisível. Lula é o novo presidente, sejamos esperançosos, diz a esquerda capitalista, vamos voltar ao passado, afinal, o passado que ele prometeu tem um itinerário histórico de volta muito curto: ano de 2016, quando deixamos de ser feliz. Eu fico com os que não se rendem e caminham contra a corrente. Outro mundo é possível, mas é preciso ter um horizonte futuro emancipador que oriente uma intervenção estratégica conjuntural e as reformas estruturais antisistêmicas.