O morto que não morreu – ALDER TEIXEIRA

Entre gôndolas e estantes, na Bienal 2019, deparo com o escritor Oswald Barroso. Sabendo da minha pretensão de escrever com Régis Frota livro sobre a cinefilía no Ceará, indica-me a leitura do recém-lançado Aproximações, do pai, Antônio Girão Barroso, que li praticamente de uma sentada, gostoso que é.
Trata-se de uma coletânea de crônicas que sucede ao já muito aplaudido Poesias Incompletas, com que Oswald Barroso praticamente abraçou em livro a obra desse artista de múltiplas linguagens, e poeta na mais rigorosa expressão da palavra.
Antônio Girão Barroso, sabemos, não foi um escritor prolífico, pelo menos com publicações em livro, embora tivesse seus “bolsos”, como lembra o filho e organizador da seleta, sempre “carregados de poemas” que se perderam no tempo. Isso não desmerece, por certo, a qualidade de sua obra, do poeta de extração modernista e exímio construtor de imagens do cotidiano ao cronista de prosa enxuta, econômica, mas, não raro, intencionalmente desabrida.
O livro está dividido em oito partes: I Literatura, composta de resenhas, crítica e textos de teoria literária; II O Modernismo no Ceará, que transita entre o ensaio curto e a historiografia; III O Grupo Clã, em que procede a sucinto levantamento das diferentes tendências do movimento; IV Poesia Concreta, sobre o concretismo no Ceará; V Os Congressos de Poesia e de Escritores, registros de eventos marcantes da época; VI A S.C.A.P/O Salão de Abril, breve registro acerca dos eventos da Sociedade Cearense de Artes Plásticas; VII Cinema, com crônicas curtas sobre filmes e diretores; VIII Contos, Ensaios, Crônicas, com alguns contos e textos diversos.
Abrangendo em grande parte textos produzidos nos anos 30 e 40, é natural, o livro exige do leitor um certo reenquadramento histórico, nomeadamente quando trata, por exemplo, de cinema, pois que o olhar de Barroso limita-se ao que havia de disponível no jargão da crítica cinematográfica, mesmo a grande crítica, a quem o autor cearense nada deixa a desejar. Antes pelo contrário: Antônio Girão Barroso, bem no estilo personalíssimo que é uma de suas marcas como intelectual e artista, antecipa-se muitas vezes ao que os mais prestigiados críticos de cinema brasileiros só muito mais tarde viriam a fazer. Na sua opinião, e na perspectiva do seu olhar atento às particularidades de uma arte extremamente complexa, deve-se atribuir ao realizador a “personalidade” estética do filme, algo muito próximo daquilo que viria a nortear a política do cinema autoral.
É nessa ótica, por sinal, ecoando o conhecido aforisma de André Gide, para quem “O assunto (em Arte) é quase nada, o modo de tratá-lo é tudo”, que Barroso escreve texto lapidar sobre a forma no cinema, advertindo-nos de que muitas vezes, de uma história simples e aparentemente desinteressante pode-se extrair um grande filme (sic).
Num texto brevíssimo sobre a morte de Jáder de Carvalho, publicado originariamente na coluna “Revista”, página Letras e Artes, do jornal Tribuna do Ceará, 10/08/1985, Barroso joga com a antítese “o morto que não morreu” para exaltar a amizade pessoal e o respeito sem medida pelo autor de Terra de Ninguém (1931), a quem, quase menino (Jáder, homem feito) conhece em inusitado encontro “no velho Iguatu”, como demonstra, com a sutileza do poeta, o seu carinho pela terra de Humberto Teixeira.
Na incontida necessidade de evidenciar o talento poético do amigo morto, Antônio Girão Barroso cita-o, como de cor, no irretocável poema Ironia, feito por Jáder em obra levada a efeito com parceria de Sydney Netto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza, de 1927: “O sertão  — fará um mês? — era de entristecer. // Ante o esplendor da floresta ressuscitada, ante a fartura da água, / Ouvindo graúnas, corrupiões e galos de campina, / Vendo a enxada cavar, ansiosamente, a terra, / Eu me pergunto, agora: “Foi milagre?” / Eis me responde um sapo, lá dos juncos da lagoa: / — Foi! / Mas, outro sapo, irônico, numa troça finíssima, / logo explica: / Não foi!”
Legenda viva​ da poesia e da intelectualidade do Ceará, Antônio Girão Barroso dá a ver, com o livro amorosamente organizado pelo filho Oswald, aquilo que dissera, coberto de razão, sobre Jáder de Carvalho, e que a ele, não menos, aplica-se à perfeição: “Antônio Girão Barroso, o morto que não morreu”.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica