O LIVRO FANTASMA DE UM MINISTRO MORTO

“Deus tenha piedade desta nação.” (Eduardo Cunha)

Sonhei que vivia num país estranho, tão estranho que só no meu sonho existiu, e que alguém assassinava o primeiro ministro daquele lugar inusitado que o sono inventou.

Ninguém sabia como tinha sido, que arma ou método fora usado, quanto tempo demorou a agonia da vítima, e outros sórdidos detalhes técnicos de última página de jornal e prontuário de legista, mas todo mundo sabia que tinha sido.

Por alguma razão todas as fotografias, todos os vídeos e todos os áudios do ministro assassinado foram proibidos de circular, e a própria internet, que prometeram apenas restringir, acabou cortada e também proibida em todo o território nacional, para evitar qualquer possibilidade remota de vazamento.

Em compensação, a imprensa, repentinamente estatizada, não tinha rigorosamente outro assunto: nenhuma notícia que não fosse essa, o assassinato do primeiro ministro e a busca do seu assassino, que ninguém parecia saber quem era, era transmitida. Parecia que nada mais acontecia, e em breve ficaria claro que efetivamente nada mais poderia acontecer. Os jornais, bruscamente estatizados, não iam falar sobre absolutamente mais nada enquanto não fosse encontrado, capturado e submetido ao julgamento e à justiça, o infame assassino do ministro; e quando isso se resolvesse, se se resolvesse, as outras notícias do passado permaneceriam no passado, ou menos: em vez de ser notícias seriam apenas coisas que aconteceram, sem dignidade de registro, e mesmo nossa memória pessoal dos fatos seria inútil. 

Só o próprio assassino sabia de sua culpa, e onde quer que ele estivesse não parecia disposto a se entregar e confessar: por isso, absolutamente toda a população, que abrangia todos os meus compatriotas do sonho, foi considerada suspeita, além dos estrangeiros, também eles estrangeiros de sonho.

Não estavam excluídos da suspeita nem mesmo os apoiadores mais ferrenhos e intransigentes do falecido ministro: em alguns casos, foram os primeiros a ser interrogados.

O país fechou as fronteiras, proibiu os voos internacionais, tanto de ida quanto de volta, e obrigou todos aqueles que precisavam sair de suas cidades a prestar esclarecimentos prévios; as reclamações, nos dias que se seguiram imediatamente à medida, foram constantes: era absurdo que alguém que estivesse nos extremos do país, nas cidades mais inóspitas, fosse suspeito por algo que acontecera na tão distante e remota capital federal, era o que mais se ouvia.

Logo todos aqueles que se queixavam perceberam que não adiantava reclamar: os interrogadores, igualmente tensos pelo fato de também eles terem que se submeter a interrogadores, que seriam eles mesmos submetidos a outros interrogadores, descontavam sua frustração administrativa nos descontentes. A burocracia das delegacias se tornou um caos: todos aqueles que questionavam as restrições que sofriam, por mais brandos e educados que se mostrassem, eram detidos sob a acusação de desacato à autoridade. Mas, além desses casos de ocasião, milhares, e também eles ligados à obsessão principal, a única preocupação verdadeira de todos os órgãos de segurança pública era descobrir quem tinha assassinado o primeiro ministro.

Bastou pouco tempo, pouco mais de duas semanas, para que até mesmo o cotidiano dos mais conformados e obedientes mudasse: à exceção de quem era responsável por vigiar as ruas, todos deviam estar em casa no máximo uma hora e meia depois do crepúsculo. A energia elétrica era cortada às dez horas da noite, e restabelecida, sem horários fixos, entre as seis da manhã e o meio-dia.

As madrugadas eram atravessadas por tiros inexplicáveis; os dias eram repletos de mortos que ninguém explicava e logo recolhidos; os jornais não falavam sobre o assunto.

Rapidamente a quantidade de moradores de rua caiu para menos da metade.  

As periferias eram constantemente sobrevoadas por helicópteros; pelas manhãs quando os trabalhadores saíam de casa pra trabalhar e os desempregados cadastrados pra procurar trabalho, viam os mendigos sobreviventes cobrindo com tinta pichações inexplicáveis, nas quais sob a tinta fresca ainda se identificavam as iniciais escritas com fúria.

As iniciais do nome do ministro assassinado.

Não era possível ver mais que isso, e ainda assim de relance, porque os homens fardados e de fuzil olhavam pra gente como quem diz que o melhor era continuar andando. 

Não víamos mais que as iniciais, mas isso já dizia tudo… o que não dava pra entender era a intenção sadomasoquista dos provocadores anônimos.

Não se ouvia mais a voz indecisa nem se via mais o rosto desconfiado do ministro assassinado; a divulgação estava proibida; em compensação, seu nome era uma obsessão surda: na televisão e no rádio só se falava nele, e apenas nele, enquanto não se cortava a energia e os aparelhos restavam inúteis; mas ninguém que não fosse obrigado a isso, além dos loucos que lamentavam a sua morte escrevendo coisas nas paredes ou dos loucos que comemoravam sua morte escrevendo coisas nas paredes, ninguém mencionava ou queria ouvir o nome do ministro morto: quando o nome era dito nos noticiários obcecados e histéricos, geralmente se fingia que não se ouvia: era uma obsessão surda e muda, ainda que fosse obrigatório, enquanto houvesse energia, manter ligados os rádios e os aparelhos de televisão que estivessem funcionando.

Quando quebravam os aparelhos, seus donos quase nunca mandavam pro conserto ou substituíam; os objetos inúteis se tornavam as testemunhas passivas e tranquilizadoras de uma paz restrita.

É certo que havia rádios de pilha e até mesmo algumas televisões à pilha; mas, a energia cortada, as próprias emissoras e difusoras ficavam impossibilitadas de transmitir e retransmitir; seria o momento do paz generalizada, mas não era possível ter paz naquele instante.

Era quando os helicópteros começavam a ronda aérea.

***

Na madrugada de uma sexta-feira vazia, como todos os outros dias da semana, agora mesmamente iguais, a energia foi ativada de repente; imediatamente depois a gente ouvia os cassetetes baterem secamente nas portas: mandavam ligar os televisores e os rádios e colocar o volume de todos os aparelhos no máximo.

Até mesmo a internet voltou.

Tivemos que ouvir o hino nacional porque éramos obrigados a ouvir o hino nacional. Nunca soube de ninguém que ouvisse o hino nacional por vontade própria; sei de pessoas que automaticamente se levantam e levam a mão ao peito quando toca o hino nacional; isso ainda é diferente de gostar de ouvir o hino nacional. A gravação oficial do hino dura um minuto e vinte. Eram duas horas e dois minutos da madrugada da sexta par’o domingo quando a energia voltou.

Parei de contar as repetições do hino, transmitidas em todas as emissoras de rádio e televisão, com diferenças de tempo que geravam um eco terrível, no número oitenta e cinco, e o hino nacional continuou a se repetir. Às onze horas e trinta e seis minutos da manhã de sábado foi anunciado um pronunciamento oficial, mas ainda não se sabia ao certo que representante do governo ia se pronunciar oficialmente, mas todos imaginavam do que se tratava.

Era uma mulher, e ninguém disse o nome dela: estava sentada atrás de uma bancada improvisada, com cinco homens engravatados de cada lado, sentados e imóveis como bonecos de manequim numa alfaiataria. Mas a roupa dela era puída; seus olhos estavam cansados de dormir pouco ou de ver de mais; seus lábios finos de desgaste. Mas ela olhava como quem olhasse pra Deus sem dívidas nem pecados. Abaixo dela, quase aos seus pés feito adoradores todas as câmeras do mundo: as restrições a voos internacionais tiveram suspensões de emergência para a imprensa.

Ela se levantou e disse: “FUI EU”, e um burburinho reproduzido por pelo menos uma centena de idiomas emancipados e gramaticalizados fez com que não se compreendesse mais nada. Ela se calou por enquanto, pois sua única frase até agora já tinha dito tudo, e se manteve firme na sua posição. Quando a ordem se estabeleceu, ela contou calmamente como tinha assassinado o primeiro ministro: fez a descrição mais perfeita de um assassinato em que o culpado, nos romances policiais, é uma mulher. Tudo era perfeitamente verossímil. E todos nós, do lado de cá da transmissão, o lado indefeso, sabíamos instintivamente que não tinha sido ela, e ninguém falou sobre o assunto.

No dia seguinte os jornais, que eram praticamente um só, já que as notícias eram as mesmas, diziam que o congresso revia a possibilidade de aplicar a pena capital. A segunda notícia mais importante daquele dia dava conta de que aquela mulher que confessara não podia ser a autora do crime. A mulher, ainda sem nome, foi presa sob acusação de obstrução à justiça. Eu, da minha parte, do lado indefeso das transmissões de rádio e televisão, quedava apaixonado por uma mulher que eu nunca veria em pessoa e da qual não sabia nem sequer o nome.

A única coisa que sabia dela é que acabaria desaparecendo nos labirintos da burocracia jurídica e do sistema penal. As consequências sentimentais de pressentir aqueles fatos ocultos era tão grande e seria ainda tão avassaladora nos dias seguintes que a terceira grande notícia do primeiro dia em tempos que trazia fatos oficiais inéditos não me abalou. Centenas de anônimos irremediavelmente inocentes reivindicavam a autoria do crime. Mártires que queriam se sacrificar pra que o cotidiano se restabelecesse. A que ponto chegamos. Foram todos presos por obstrução à justiça.

***

Se passou um mês. A situação não melhorou, embora haja menos tiros inexplicáveis e menos cadáveres que ninguém explica, talvez porque havia bem menos gente a quem matar, talvez porque os responsáveis por aqueles que atiram tenham percebido que bala custa caro. O que aconteceu foi que, sem mais explicações, e os jornais não falavam nisso, ficou cada vez mais difícil comprar comida. Diz que as entregas ficaram lentas porque os caminhões não podiam mais circular noite adentro e madrugada afora. Parecia explicar, mas não dava conta do processo como um todo e de sua velocidade. Uma greve de transportadores de carga que ocorrera coisa de um ano antes não deixara faltar certos produtos indispensáveis, como bebida e cigarro. Agora falta quase tudo, e o que tem, o que sobra por enquanto, ficou pelo dobro do preço. E todo mundo pensava, estranhamente conformado: vai piorar. 

Começou a faltar, também, as coisas que você compra e não sai por aí dizendo que comprou. Quem sofria de abstinência era visto tremendo de manhã, pintando com mãos trêmulas os muros, inexplicavelmente pichados, sob a mira de fuzis, ou entre os cada vez mais rarefeitos mortos não explicados das manhãs que sucediam madrugadas de tiros inexplicáveis, também cada vez mais raros.

***

  Eu só precisava de um pedaço de queijo endurecido de tão velho. No breu da noite, pra aproveitar a luz da lua e das estrelas, ou mesmo a do holofote dos helicópteros dos policiais, porque era necessário economizar as poucas velas, era preciso também pensar em alguma coisa que, dessa vez, funcionasse. “Eu preciso matar esse rato”, eu fingia que pensava, quando o que me atormentava era a paixão por uma mulher inacessível que vira na televisão, e fingia que pensava nisso olhando pra ratoeira que eu tinha fervido em água quente pra que o cheiro dos ratos mortos no passado não assustasse o rato que eu queria matar agora. Eu esperava, às vezes já rindo comigo mesmo feito doido, que um dia aquilo ia parecer engraçado de mesmo: o fato de que na falta de um pedaço resistente que pudesse usar como isca, salpicando a ratoeira, os restos de um parmesão ralado que tinham começado a apodrecer, porque durante mais da metade de cada dia, não havendo eletricidade, a geladeira não servia mais pra conservar os perecíveis guardados em embalagens abertas.

O jeito era, a sério, matar o rato a marteladas.

Minha visão estava tão adaptada à escuridão quanto a de qualquer pequeno animal noturno. A questão foi esperar que o desgraçado saísse do ralo do banheiro, de onde supus que viesse todas as noites porque, animalizado, aprendi a localizar a origem dos seus guinchos.

Foi no segundo dia que prendi o animal pelo rabo, e era apenas um camundongo, uma catita, e eu ria, segurando o martelo com a outra mão, e a outra mão se ergueu como uma a lâmina da guilhotina.

O pequeno rato, sem medo, me olhou.

Não era possível que acontecesse, mas aconteceu. Percebi, por causa daquele olhar: eu pensava que tinha um problema com os ratos, mas não tinha propriamente nada contra eles. É certo que o cara que matou o primeiro ministro pode ser que também achasse que tinha problemas com o puto, mas podia ser que soubesse, pelo menos, que não tinha nada pessoal contra ele. “Não podemos nem vamos nos tornar melhores com a morte de ninguém”, pensei, e deixei que o rato se fosse. O mundo era injusto e inóspito, a vida de todos tinha sido interrompida na sua falsa normalidade porque um homem com um título oficial tinha sido assassinado, e eu, vazio, tinha me apaixonado por uma mulher de quem desconhecia destino, origem e personalidade. O pobre rato, que também deve ter os seus problemas, e talvez bastante humanos, não tinha que ver com tudo isso. Sou um sujeito de poucos pensamentos, mas acho que posso me orgulhar mediocremente de ter pensado, na vida, pelo menos uma coisa filosófica e correta, dessas que de tão corretas e filosóficas pode ser que não sirvam pra nada. Não nos tornaremos melhores com a morte de ninguém.

***

O problema é que no dia seguinte não acordei do sonho, no qual estou indefinidamente preso. Tive a má ideia de, cansado, dormir dentro do próprio sonho, e dormir, pior, não o sono dos justos, apenas o sono dos cansados. Acontece que os ratos, previdentes e corporativos, se juntaram ao pequeno membro de seu povo que eu tinha ameaçado com um martelo. Podia ser que eu não fosse piedoso da próxima vez, devem ter pensado entre guinchos. Podem ter considerado que talvez nem houvesse uma próxima vez: podiam ter percebido o que eu queria dizer com aquele ato de desistência, que nenhum de nós, nem mesmo um rato, pode se tornar melhor com a morte de ninguém. Mas os ratos preferiram ser previdentes, mesmo sendo ratos de sonhos, e roeram o sujeito que eu mesmo sonhei que era, daí eu não poder acordar. Mas se não acordei e não pude contar esse sonho pra ninguém, como você pode saber dessa história? Pode ser que os pesadelos não passem de uma estranha construção em coletivo, como a vida dos seres humanos, como a história dos seres humanos, o trabalho dos ratos.

 

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

Mais do autor

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.