O PERNAMBUCANO HERMILO BORBA FILHO (1917-1976) foi um ser humano múltiplo, envolvido em uma dezena de atividades artísticas. Hermilo faleceu prematuramente aos 59 anos de idade. Entre os dramas políticos vividos por ele estão duas ditaduras: a do Estado Novo (1930-1940) – na qual ele foi um jovem preso político – e a Ditadura Militar dos anos 1960-1980 que marcaram profundamente o desenvolvimento dos protagonistas do autor pernambucano, no teatro e na literatura. O grotesco é algo onipresente em sua obra. Um grotesco que se concentra no corpo, seus excessos, seus orifícios, suas comilanças, suas bebedeiras, seus desejossexuais. Um grotesco, a exemplo de Mikhail Bakhtin,baseado na cultura popular e na carnavalização da literatura, como anota a professora Geralda Medeiros Nóbrega em seu excelente livro “Hermilo Borba Filho: memória da resistência e resistência da memória”.
Em sua potente obra “Agá”, Hermilo desenvolve uma variedade de “Eus”. Essa fábula apresenta os humanos em relações de poder que são travadas no domínio, regulação e controle do corpo. Esse controle corporal pode ser feito de várias maneiras, desde a opressão na alma e no espírito, que se reflete na carne, até o uso da tortura e o despedaçamento do corpo, na destruição da vida humana pela execução e assassinato. Como “Eu, padre”, por exemplo, ele realiza uma analogia entre o martírio de Cristo com o dos que se rebelam contra as ditaduras. Vê-se o padre encenando uma eucaristia que celebra tanto a morte de Cristo quanto a de um preso político esmagado em sua carne e ossos. Nessa analogia, o chão da cela torna-se não só um altar ou um calvário, mas também uma verdadeira mesa de dissecação moderna. Esse olhar sobre os corpos torturados confunde-se com o olhar de um anatomista, que mapeia a ação do Poder sobre corpos,como forma de erigir um memorial contra a tortura, um testemunho que preserve a memória dos que perderam suas vidas nos porões da repressão no Brasil, muito bemrefletido pelo professor Luiz Roberto Leite Farias em seu trabalho analítico “O grotesco e as imagens do corpo no romance Agá de Hermilo Borba Filho”.
Grotesco, no início, é um substantivo referente à gruta. Ou seja, diz respeito àquelas imagens descobertas pelos arqueólogos nas escavações do palácio do imperador romano Nero, o “Domus Aurea”, construído no primeiro século da Era Cristã, com figuras híbridas que fundiam o reino animal com o vegetal, seres ambíguos. Exemplos de grotescos são as sereias e os centauros, ou as pinturas do céu e do inferno concebendo anjos como crianças comasas ou demônios como uma mistura de homens e bodes.
Mas com o passar do tempo, o termo deixa de ser um substantivo para tornar-se um adjetivo com amplo significado, geralmente abrindo espaço para o devaneio eà deformação (mais sutil do que a deterioração). Wolfgang Kayser em seu livro “O Grotesco” (Ed. Perspectiva, 2003)chama atenção para o uso que Montaigne faz do vocábulo em seus ensaios, trasladando a palavra do domínio das artes plásticas para o da literatura, para quem grotesco possuía uma aparência monstruosa, sem forma, dando um caráter abstrato ao vocábulo, convertendo-o em conceito estilístico, algo teorizável. Todo conceito é não apenas efetivo enquanto fenômeno linguístico, mas é também imediatamente indicativo de algo que se situa para além da língua.
Assim, o grotesco com suas deformações propicia uma discussão sobre a norma e o a–normal, sobre o que é a margem e o que é o centro; afinal, tudo aquilo que choca na aparência humana tende a tornar esses “humanos deformados” em párias e excluídos, sendo estigmatizados e jogados para o escanteio da sociedade (O Corcunda de Notre Dame), por meio de modelos políticos e sociais que se empenham por controlar e enquadrar as diferenças. O mundo retomou uma onda conservadora e repressora das diferenças; em pleno século XXI, grupos políticos tentamlegislar sobre o corpo individual e sobre a carne da sociedade, em violência sistemática dirigida aos que não se enquadram e se rebelam contra os padrões de verdade impostos por esses grupos de poder.
Por outro lado, na era da imagem e da pós-verdade, o grotesco (ou o fantástico) também é usado como forma de manipulação por autoridades, ao mesclarem a aparente seriedade da liturgia requerida pelos cargos ocupados com atitudes bizarras, comportando-se como bufões, palhaços, garotos-propaganda ou pseudo-heróis, imprimindo assim de forma taticamente espetaculosa um ethos diversionista e publicitário em suas comunicações públicas.
Mas na literatura de Hermilo Borba Filho os aspectos grotescos, ora de maneira mais sutil, ora de maneira mais explícita, incomodam e conseguem trazer o seu choque característico. Em “Agá”, Hermilo produz uma narrativa atravessada pela tortura e a execução dos que se rebelam. O corpo humano é esmagado e despedaçado de forma grotesca, tudo descrito em minúcias, em um verdadeiro manual de suplício da carne, destruído pelo Estado ditatorial. Mas “Agá” é também permeado por uma postura de resistência, em que o corpo pode ser destruído, mas os perseguidos não se dobram. No capítulo “Eu, padre”, o sofrimento da carne transcende a materialidade da dor, como na figura do sacrifício do Cristo. Portanto, o grotesco em Hermilo é ao mesmo tempo denúncia e resistência, transcendência. Uma literatura muito necessária e atual para o tempo obscuro que estamos atravessando.