O ESPECTRO ENTEDIADO DO MUNDO SEM TETO: A OBRA DE EDUARDO FRANCELINO, ATÉ AGORA (XIV)

LXXXI
O vazio da linguagem é inalcançável; seu vácuo suga todas as coisas sem que elas pareçam sair do lugar. A linguagem dá sentido ao que alcançam os olhos, e de algum modo uma colocação hierárquica. Não é inocente o olhar onde houver a linguagem, nem é inocente a linguagem desde que seja conhecida. A inocência é inalcançável para quem domina a linguagem. A linguagem, ainda assim, é uma desilusão necessária.

LXXXII
Ainda assim é possível não saber o nome de determinadas coisas, até mesmo de coisas muito próximas e cotidianas. Quem não é, aliás, conhecedor dos ofícios especializados de conserto, quando a ordem é que as coisas sempre sejam substituídas, quem não é iniciado nessas artes do minúsculos ignora os mecanismos metafóricos que dão nomes às peças invisíveis que movem os objetos. Nós, em geral, nos conformamos e voltamos ao princípio de apontar e localizar por proximidade: pronomes foram feitos para que nos referíssemos a coisas e pessoas tanto sem ter que repetir seus nomes quanto sem ter que mencionar os seus nomes nem ao menos uma vez.

LXXXIII
Mas o que nos leva ao dicionário não são as coisas, são as palavras: queremos em geral saber o que uma palavra estranha significa e não tanto como se chama uma coisa que não seja familiar. É muito diferente no que diz respeito ao trato entre as pessoas? Quando sabemos que um mendigo é um mendigo é bem como que não queiramos saber muito além: é difícil que consideremos que o seu nome é necessário. Os próprios mendigos têm nisso um dos maiores signos da sua humilhação. O decadente inveja o mendigo, e acha essa indiferença libertadora.

LXXXIV
Até que ponto uma pintura ainda figurativista é a cópia de uma coisa antes de ser uma tentativa tantas vezes frustrada de ser a cópia de um modo de olhar que não pode ser transmitido a não ser pelas técnicas sempre limitadas da reprodução?

LXXXV
O que diria a imagem de um mendigo num quadro quando o próprio pintor reproduzisse o olhar generalizado de que se tratava de um homem sem nome, não por não ter um nome, mas por esse nome ser constantemente ignorado e substituído? Se o pintor, banhado e barbeado, bem penteado e vestido, tratado nas suas feridas e devidamente vermifugado, ou seja, pronto para uma aparição pública dissesse que se tratava de um autorretrato, eventualmente o único em que se reconhece?

LXXXVI
Um pintor pode não ter o nome reconhecido ainda que sua obra seja visualmente icônica. Também acontece aos pintores não saberem quem são e nem saberem da sua obra. Isso torna, em algum nível, os pintores semelhantes aos mendigos que ninguém quer saber quem são. Os pintores, aliás, e quase todas as pessoas que existem.

LXXXVII
Uma pintura figurativista ainda é a cópia de alguma coisa quando opera um deslocamento tão radical da visão, quando oferece apenas a imagem de uma coisa que não pode ser tocada, pois não está lá, não uma cópia propriamente dita, que por menos que fosse a própria coisa ainda ofereceria a ilusão do alcance ao toque? Uma pergunta que os fetichistas poderiam responder, ou que preferem eles mesmos não fazer a si mesmos.

LXXXVIII
A vaidade daquele que se ofende porque teve o seu nome esquecido. O desejo que alguns sentem de serem esquecidos. O fato de que não é impossível que um único ser humano tenha esses dois sentimentos ao mesmo tempo.

LXXXIX
Quando não são reproduções ou pretensas cópias, quando são efetivamente o que são ou o que esperaríamos que fossem, com seus nomes os mais específicos, as suas qualidades esmiuçadas em etiquetas bem precisas, e seu histórico muito bem detalhado nos cardápios do mundo, nessas condições ideais ainda podemos mesmo tocar aquilo que desejamos?

XC
Por prudência, por respeito e por medo aqueles humanos a quem Deus aparecia evitavam olhar na sua direção. Alguém que tivesse a chance agora mesmo abdicaria de poder tocar em Deus?

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.