O ESPECTRO ENTEDIADO DO MUNDO SEM TETO: A OBRA DE EDUARDO FRANCELINO, ATÉ AGORA (IX)

LI

Aristóteles afirma que tendemos, humanos, ao desejo de saber, e que é por causa desse desejo que tanto nos apegamos às sensações, que são uma das condições que possibilitam a conhecimento, aliadas à capacidade da memória, que não estaria tão desenvolvida nos animais, que também têm órgãos análogos aos humanos para perceber as sensações. Em segundo lugar, Aristóteles destaca uma maior importância da visão em relação aos outros sentidos, ou melhor, atribui aos humanos um maior apego ao sentido da visão que aos demais sentidos, por ser, dentre todos, o que melhor e mais facilmente permite que se estabeleçam as diferenças e as semelhanças entre as coisas. — Mas como um princípio básico de memória, ainda segundo Aristóteles, também pode ser identificado nos animais, ainda alguns fatores além distinguem o ser humano: que da sensação passem à memória e que da memória passem à experiência, e que da reelaboração da experiência se consiga chegar à arte, ou seja, que da observação dos particulares se chegue ao universal. Que de uma sequência de ocorrências de mesma natureza se consiga dizer o que há de constante sem a necessidade, a rigor impossível, de analisar exaustivamente a totalidade de ocorrências de mesma natureza. Que não seja necessário provar a água de todos os rios para saber que um rio é um rio. Aristóteles, porém, parecia buscar alguma coisa que fosse ainda mais fluida do que os rios, que dependeria de uma capacidade mais arguta de conseguir ver o que não pode ser visto a partir do visível sem que o próprio visível, que é ponto de partida, se tornasse um limite para a visão (só os deus, que não sofrem as limitações humanas, poderiam, sem esforço e de modo inocente ter essa visão das coisas, que nem conseguimos propriamente ver, mas vislumbrar pelo esforço do raciocínio). É possível que Heidegger tenha derivado daí a sua distinção entre o ente (específico) e o ser, numa relação que leva até a angústia (se se aceitar a validade dos seus pressupostos e se se considerar que se trata mesmo de um problema a busca do ser, como quem construísse uma gaiola sem grades para um passarinho sem corpo), como também um definição de arte na qual uma pintura digna do nome nunca é apenas a sua materialidade de tela e tinta nem a replicação de uma imagem que é possível que permaneça ainda como reprodução quando o instante original já estiver concluído (a cena pode ser feita da composição de objetos que por mais que permaneçam e possam ser recolocados nas mesmas posições jamais repetirão o próprio instante porque, por mais repetitivos que possam ser, cada instante é necessariamente único, ainda que não seja único de maneira inédita, e também é bem possível, e até bastante provável, viver sem pensar no assunto e sem sofrer por conta dele). As botas que aparecem reproduzidas num quadro não podem ser calçadas; as botas que aparecem num quadro não podem ser calçadas porque não são botas; as botas que aparecem num quadro não podem ser calçadas porque são uma representação pictórica que faz com que as pessoas que sabem o que são botas pensem em botas e as que não sabem o que são botas mas têm algum conhecimento geral do que são os calçados possam saber ao menos aproximadamente a que objeto remete a imagem reproduzida; as botas que aparecem num quadro e que não podem ser calçadas porque não são botas mas antes uma representação pictórica que pode gerar naquele que as vê uma interpretação ou uma lembrança ou um conhecimento mínimo do que são as verdadeiras botas que se encontram no mundo real – estão livres para ser o reflexo do que une todas as botas mas não pode se encontrar especificamente em nenhuma (é mais ou menos o que pode ser que tenha dito Heidegger, ou se não chegamos a tanto a uma interpretação mais ou menos corrente no passado do que pode ser a arte pictórica, quando não se pretender que seja uma composição física de tela e tinta, que seria um pouco como dar às coisas uma salvação que não lhes pertence, ou roubar essa salvação, mas não para devolver a elas, da própria constatação de não-posse (não é na pintura abstrata que se encontra a revolta e a vingança contra as coisas, muito pelo contrário, e nem é tanto o momento em que um quadro se reduz à sua condição de quadro, ou seja, de coisa (o que de certo modo ocorre mais propriamente em Mondrian, que concebeu como conceito os quadros feitos de formas geométricas, do que em Magritte, que escrevia sob a reprodução do que nos pareciam cachimbos que aquilo não eram cachimbos, da mesma forma que ainda poderia escrever, por baixo, que as próprias palavras não eram palavras (se não se interpretar o que faz Mondrian não como uma redução da pintura a uma espécie de pureza de forma e cor, mas antes a uma redução das próprias coisas, como se fosse Mondrian uma espécie de pintor naturalista de um mundo das ideias que fosse uma mistura do que pensava Platão com o que pensava Pitágoras, desde que fosse um mundo que trouxesse um princípio das coisas e não o espelhamento de cada uma delas, para o que a arte de Mondrian talvez fosse até excessiva)))). Mas, em compensação, o que ocorre com os pobres pintores figurativistas? Onde fica exatamente sua necessidade de redenção, se o que querem é redenção, ou seu cinismo e a sua vingança, se o que querem é cinismo e vingança? É preciso lembrar que também os seres humanos são imagem que se reproduz em retratos, e há mesmo quem não entenda que haja fotografia que não seja de pessoas. Mas o retrato não é o instantâneo biográfico do retratado, de quem eventualmente pode não se saber nada (os quadros das majestades do mundo, dos quais tudo se sabe, são o mais avesso dos exemplos, pois neles se encontra o esvaziamento completo de toda a dramaticidade, pois dos reis se diz e se confirma que são reis, dos poderosos que são poderosos e dos ricos que são ricos): é o momento em que o quadro pode mostrar mais o ato de tomar do que o de gerar algo que não será devolvido; seu princípio é uma espécie de espoliação que gera o próprio vazio como espólio: o catador de lixo de rua e o auxiliar de enfermagem exausto que tem parte do rosto oculta pela máscara é sob essa ótica e essa lógica que aparecem, eles que não se pensaria em colocar como o centro de uma obra de arte pictórica, eis que surgem ao lado dos cães e dos ratos, que só são específicos na medida mesma em que a aparição de qualquer coisa em geral exige que ela apareça exemplificada, casos em que são mais legítimos os defeitos dos indivíduos, que negam a idealização de qualquer modelo: as marcas específicas de uma pessoa a tornam ao mesmo tempo mais e menos específicas do que a sujeira de um par de botas retratado, sendo sujeira e botas, como as cicatrizes e as rugas das pessoas, as marcas dos bichos, traços de tinta sobre a tela. O retratado, assim, nem alcança a sua individualidade nem alcança ser o exemplo de um modelo que não pode ser alcançado. O que ele pode tocar? O avesso das duas coisas. Como ser destacado da multidão por causa do anonimato, como ser especificamente ninguém. — Um ninguém em que a pintura e o pintor investe suas esperanças de salvação num mundo em que as coisas ainda puderem ser salvas, ou a sua profunda ironia quando imaginar que as coisas já não podem ser salvas, ou que não faz sentido sofrer em nome de algo como a salvação. Mas tudo precisa ser mesmo sempre tão sério?

LII

O que torna cego o sábio? O que torna sábio o cego? O cego acreditamos que é necessariamente consciente da sua cegueira, o que o torna além de cego um prisioneiro a quem tudo que resta é tornar sua prisão um ponto de partida. Já o sábio, mesmo o sábio, pode acreditar que sabe o que não sabe (pois dirá coisas cuja comprovação não está ao alcance dos seus olhos como também não está ao alcance dos olhos dos seus debatedores). O risco inerente à construção do conhecimento na concepção de Aristóteles. — Em segundo lugar, resta a capacidade, acurácia da visão como acurácia do pensamento, não muito diferente da que faz a dialogia de claro e escuro para conhecimento e ignorância. Pode significar que se deseja que a inteligência e razão e o conhecimento tornem as coisas acessíveis sempre como se pudessem ser vistas, que a razão e o conhecimento e a inteligência tornasse as coisas inequívocas como algo que parecesse sempre o mesmo aos olhos de todos. Mas Aristóteles jamais diria que era necessário pensar com os olhos ou que os olhos fossem capazes de uma operação como a do pensamento; Aristóteles não atribuiria a nenhum dos sentidos e talvez nem mesmo isoladamente à memória a faculdade do raciocínio; assim como não colocaria nunca as capacidades de pensar e de memorizar, condicionais e instrumentais, acima da capacidade de raciocínio, ainda que reconheça os sentidos como parte essencial do que poderíamos conceber como algum entendimento (o qual, porém, ainda não estaria muito distante do nível mental de algumas bestas, também dotadas de ouvidos para ouvir e de olhos para ver). — O grau zero do conhecimento se encontra antes desse ponto em que o corpo reconhece as semelhanças e as diferenças entre os estímulos; é possível confessar a ignorância sobre as coisas, quem o faz já é criatura provida de linguagem, e isso é bem posterior, mas confessar a completa ignorância é tão equivocado quanto professar o pleno conhecimento de todas as coisas, além de ser um exercício de falsa humildade.

LIII

Diziam de Tomé que só acreditava no que pudesse ver, e julgavam que Tomé era prevenido, se não julgavam que Tomé não chegava a ser mesmo um pouco cético. Mas não era, na verdade, um pouco precipitado da sua parte acreditar numa coisa só porque podia vê-la? — Os quadros que melhor retratassem as coisas como elas podem ser vistas deviam ser também a prova maior de que as imagens não são necessariamente coisas fidedignas, na medida mesma em que podem ser reproduzidas, mas tomamos ainda as reproduções pelas imagens e as imagens pelas coisas. Já não agimos, é claro, como as plateias dos antigos cinemas que fugiam quando parecia que um trem vinha de longe, a toda a velocidade, nos atropelar a todos. Não é que tenhamos aprendido que o trem não é real: é que nos dispomos mesmo a ser atropelados magistralmente numa sala de projeção. — Se aprecio a arte consciente de que ela não me engana eu aprecio arte?

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