O distrital, o “distritão” etc.: entre a ingenuidade e a astúcia

Um espectro ronda o sistema político brasileiro, pode-se parodiar. É o voto distrital. A seu favor e com argumentos diversos, conjuram-se, entre outros, o vice-presidente da República e o senador José Serra, o presidente da Câmara dos Deputados e parte do PMDB, o líder do movimento “Vem pra Rua” e quejandos, contrapostos às surpresas episódicas oferecidas, a cada quatro anos, pelas eleições parlamentares, algumas provocadas por distorções institucionais, outras, pela própria natureza das coisas democráticas.

Investe-se contra a representação proporcional, instituída pelo Código Eleitoral de 1932, e que orienta atualmente as eleições para vereadores, deputados estaduais e deputados federais, inflacionando-se – por ingenuidade ou por astúcia – as ilusões sobre supostas virtudes cívicas do sistema eleitoral majoritário ou distrital. Vai-se mais longe, propondo-se, inclusive, o “distritão” (tecnicamente denominado “voto singular não transferível”), ou seja, o sistema que cuidaria de tornar cada Estado, nas eleições para deputado federal e deputado estadual, e cada Município, nas eleições para vereador, em uma única circunscrição ou distrito, resultando eleitos, afinal, os mais votados em ordem decrescente.

O vice-presidente da República é a voz mais loquaz em favor do tal “distritão” nas eleições proporcionais. Em artigo em “O Estado de São Paulo” (O “distritão”, 14/2/15, p.2) apresenta argumentos tentadores, vazados em linguagem sibilina e prenhe de elipses mentais, resumindo razões jurídicas e politicas a justificarem a adoção do “distritão”. Para tanto, extrai da Constituição Federal uma especiosa principiologia de decisão majoritária, a envolver as eleições para o Legislativo e o Executivo, e as decisões judiciárias, que se dão por maioria. E salienta que, como ponto fora da curva, “a única exceção à determinação de que a maioria é que fala em nome do povo […] é o critério de proporcionalidade obtido no quociente de votos”. Ademais, assevera que “entre os valores constitucionais, vontade majoritária e partido político, deve prevalecer o primeiro”, quando condena o voto proporcional e propõe o “distritão” como a salvação da lavoura eleitoral brasileira, tudo na contramão do que decidiu o poder constituinte originário em 1934, 1946 e 1988.

De modo geral, as conclusões da literatura especializada – baseadas em análises empíricas – acerca do sistema eleitoral majoritário ou distrital são opostas à tese do voto distrital, e desanimadoras. É que tal sistema tende a contribuir para o fisiologismo, possibilitando, inclusive, o abuso do poder econômico, para tornar paroquial a representação nacional (as “notabilidades de aldeia”, de que já se falava no Império) e para tirar do mandatário a liberdade de, à frente do caldeirão de pontos de vista colocados no parlamento, transcender interesses imediatos. Tudo, sem falar-se no desastre que poderá incidir em um sistema partidário já com tantos problemas como o brasileiro. Ademais, relativamente ao “distritão”, são poucos os sistemas políticos que adotam tal modalidade de voto majoritário em eleições legislativas, entre os quais figuram o Afeganistão e a Jordânia, países que, decididamente, não figuram entre as democracias políticas mais respeitáveis. O Japão, em que vigorou a partir de 1946, aboliu-o em 1992.

Por tudo, não é temerário concluir que a vocação do Brasil é a democracia representativa e proporcional, já tão bem demonstrada teórica e empiricamente, no passado e no presente, entre outros, por José de Alencar e Assis Brasil, Olavo Brasil de Lima Jr. e Wanderley Guilherme dos Santos. Na verdade, o sistema de voto proporcional é o que, realizados certos aperfeiçoamentos, constitui-se no melhor modelo para a institucionalização da democracia política entre nós, como o demonstra a experiência dos últimos trinta anos. Certamente, o chamado à razão fará com que o sistema majoritário ou distrital, de modo fundamental na modalidade apresentada do “distritão”, seja mais um ardil que o debate público enterre.

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