O discurso do procurador, por Alexandre Aragão de Albuquerque

Nem só de golpe vive a republiqueta das bananas. Mesmo se para alguns insensatos ele deve ser exemplo para o mundo, ocorre que dessa vez não somos tão originais quanto pretendem ser. Estamos copiando golpes não convencionais perpetrados no Paraguai e na Nicarágua. Como já disse Caetano, também neste caso, “a mulata não é a tal”.

Em meio a violências físicas – desfechadas exuberantemente pela polícia de Geraldo Alckmin – e violências simbólicas, divulgadas em cadeia nacional de televisão por procuradores federais para atingir publicamente cidadãos não pelas provas cabais, mas por meras convicções, somam-se a isso discursos proferidos em solenidades no planalto central do país.

No discurso do procurador geral na posse da ministra-presidenta do STF, estão documentadas verdadeiras pérolas reveladoras do tempo presente das quais um bom exegeta, com toda certeza, poderá produzir trabalho de grande estatura conceitual. Vejamos algumas breves passagens. Diz o procurador: “Vivemos numa crise multidimensional no Brasil: ética, jurídica, política e econômica. Nessas quatro dimensões está o Judiciário inserido, em maior ou menor intensidade, como fonte de esperanças da sociedade e salvaguarda insubstituível de estabilidade”.

Fonte de esperança e salvaguarda de estabilidade? Possivelmente o procurador tenha uma memória curta, pois não consegue recordar o que disse o jurista Dalmo Dallari, quando da indicação por FHC do advogado geral da União, Gilmar Mendes, para a Suprema Corte: “O Dr. Gilmar Mendes é figura muito conhecida na comunidade jurídica, por suas reiteradas posições contrárias ao Direito, à Constituição, às instituições jurídicas e a ética que deve presidir as relações entre personalidades públicas”. (fonte: http://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed296/politica.htm).

Além disso, também num período não muito longínquo, o procurador-geral na era FHC, de tanto engavetar processos contra o governo federal de então, ficou conhecido nacionalmente como “engavetador-geral da República”. Portanto como ser fonte de esperança e salvaguarda da estabilidade quando se demonstram, só para ficarmos nesses dois fatos históricos, situações tão deploráveis do Judiciário e do MP?

Em outra passagem, o procurador-geral afirma: “Nós do Ministério Público, para além do trabalho nas investigações contra a corrupção, sem assumirmos posição intransigente de donos da verdade, nem engendrarmos um falso e estéril maniqueísmo, apresentamos a nossa contribuição para ajudar a resolver aos menos um dos aspectos da crise em que nos encontramos: as Dez Medidas contra a corrupção”.

Também interessante esta passagem, pois destaca uma autoconvicção, autoproclamação do seu trabalho e o de seus subordinados, como se essa compreensão fosse unanimidade no seio da sociedade brasileira. Aliás, este tem sido o traço preponderante da atuação de muitos dos procuradores no tempo presente: se auto-definirem em suas convicções, sem permitirem nem aceitarem crítica externa ou algum tipo de controle da sociedade diante de seus extravagantes excessos contra direitos da pessoa humana.

Quando se trata da visão sobre a soberania popular, o procurador vai totalmente para o lado oposto, definindo-a como falida (e não se acham maniqueístas?). Afirma o procurador-geral: “Tenho repetido exaustivamente que a grande virtude desse caso (a Lava-Jato) (…) foi demonstrar cabalmente a falência do nosso sistema de representação política”. E por que a soberania popular também, e sobretudo, não pode ser considerada como fonte de esperança? Afinal, reza a Constituição que o poder político emana do povo que o exerce por representação e diretamente.

O cientista político Leonardo Avritzer, em comentário publicado recentemente em rede social, analisa que existe um forte ataque ao sistema político pelo poder Judiciário e o Ministério Público (MP). Para o autor, esses poderes desprezam a soberania popular e acreditam que somente eles representam o interesse público. E, logicamente, essa auto-atribuição tem de ser questionada.

Mas Avritzer ainda anota que o mais impressionante são os privilégios que o MP tem hoje: quase todos ganham acima do teto e agora querem garantir aposentadoria acima do teto; porém, surpreendentemente, não acham que isso tem a ver com a discussão sobre a corrupção. Acrescente-se o risco que se corre com as ações politizadas do MP que podem no limite levar ao fim o sistema de equilíbrio entre os poderes, já que não existe nenhuma instância revisora externa ao MP, consequentemente, esses procuradores acham que podem fazer o que bem entenderem (e o estão fazendo).

Como lembra Bourdieu, o objetivo último do poder Judiciário é garantir sua supremacia no interior das instituições monopolistas do estado. E este parece claramente ser o único objetivo do MP hoje. Importante a sociedade acordar e pensar urgentemente um formato de controle externo ao MP antes que seja tarde demais. Senão, daqui pra frente, como já vem ocorrendo, seremos julgados apenas por suas convicções, sejam elas quais forem. E como alguém já disse no passado, às favas a soberania popular e os escrúpulos de consciência.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .