O dilema de Narciso: da insensibilidade ao entorpecimento, por Alexandre Aragão

A semana política nacional continua recheada com suas revelações, ditas e inauditas, alimentadas pelas gravações produzidas pelo empresário cearense e ex-senador pelo PSDB, Sérgio Machado, com atuais representantes do poder político brasileiro.

Entre muitas das frases gravadas com Romero Jucá, destaca-se: “o Michel é o Eduardo Cunha”. Essa mesma verdade repete-se na conversa com Renan Calheiros: “O Jader me reclamou aqui, ele foi na casa de Michel e estava lá o Eduardo Cunha”. Essa identidade superposta entre Temer e Cunha faz lembrar a mitologia grega, o dilema de Narciso.

Os vocábulos narcisismo quanto narcótico derivam da palavra narciso cuja raiz grega narke remete às ideias de insensibilidade e vaidade, pois Narciso, julgando-se intocável, era prisioneiro do amor por si mesmo, incapaz de perceber o efeito que provocava nos outros. Na cultura grega, tudo o que excedia e estivesse acima dos limites e da medida (metron) acabava se transformando em algo assustador porque poderia levar à hybris, ou seja, ao desequilíbrio caótico. O grande engano de Narciso foi errar na escolha de amor. Ao invés de dirigi-lo ao outro, voltou-se para si mesmo e cometeu um incesto intrapsíquico. O que ele ama é o próprio reflexo. Seu desejo era o de manter-se eterno, perpetuar a sua própria imagem que o seduziu. Mas a sedução pelo eterno levou-o à morte.

A agonística, que aqui se entende como a competição de forças humanas tendo como meta a superação de uma visão de um mundo decadente para a afirmação de um mundo desenvolvido, que a política enfrenta hoje tem uma componente direta ligada à relação incestuosa alimentada por históricos detentores do poder político e econômico brasileiros em suas artimanhas, cujo único objetivo é a obtenção de privilégios pessoais por meio de expedientes escusos. Ao construírem para a sociedade brasileira uma imagem de seus atos públicos que não correspondem à realidade dos fatos, imaginando poderem eternizá-la ao longo do tempo, não conseguiram perceber a mudança paradigmática que vem ocorrendo no mundo desde que os processos de globalização e telemática começaram a ganhar força nos últimos tempos.

Essa luta do politicamente antigo e decadente, usurpador de bens públicos em prol de privilégios privados, contra o anseio popular por uma democracia participativa e distributiva da riqueza produzida socialmente está em pleno desenvolvimento no Brasil. De um lado os ditos representantes, assentados no poder durante décadas, e do outro lado a soberania popular, estratificada em classes sociais, a apresentar-se como uma força política que não reconhece mais a falta de transparência dos atos dos agentes públicos. Neste embate, vale destacar a importância de alguns atores nessa agonística contemporânea: além dos tradicionais movimentos sociais, as mídias alternativas e as redes cibernéticas, juntamente com o poder judiciário brasileiro, ganham um forte protagonismo na luta pela implantação de novos marcos de regulação e ação da vida nacional. Estamos apenas no começo.

Enquanto isso, vamos observando como será o fim de Narciso e sua ninfa Eco. Afinal, a vida imita a arte, ou seria o contrário?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

Mais do autor

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .