Há mais de uma semana deixei o hospital e somente hoje tive coragem de retornar a este diário; na tentativa de registrar aqui algo acerca da minha experiência frente à morte. Sim, frente a ela, pois percebi que estive muito próximo de cair nos seus braços.
Antes, a morte era para mim tão somente assunto de literatura, ou de casos alheios e distantes. Emocionava-me com as desventuras de Ivan Ilitch, sofria com a crueza dos assassinos, sem mencionar as injustificáveis perseguições aos banidos, quer movidas por bandeiras políticas, religiosas ou étnicas.
Jamais fui de cerrar fileiras nas passeatas de protesto, o mundo me gerou cauto. Até mais do que gostaria. Não que me fizera insensível, apenas optava por outra forma de manifestação: no meu caso, a palavra escrita. E, com isso, este diário tornou-se meu palanque, minha plataforma de protesto. Reconheço que recorro a um instrumento por demais recatado, sem a visibilidade de que alguns tanto gostam. A vaidade nunca inspirou meus atos, a Bíblia freou meus tênues laivos de presunção. “Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade.”
Voltemos ao motivo do registro atual. Quando acordei naquela manhã, a tosse seca, as perdas de olfato e de gosto, aliadas a um mal-estar incomum, levaram-me a concluir que eu não estava bem. Como acompanhava as notícias da pandemia, sabia-me contaminado pelo vírus da Covid-19. Clauder Arcanjo, leal amigo, foi-me companheiro inseparável. O que nos une, apesar das querelas e dos atritos costumeiros entre nós, seria (e foi) meu escudo e proteção.
Na carroça do Wilson Gregório, quase desacordado, um desfile de imagens turvava-me os sentidos. Momentos da infância, a luta pelo estudo, o zelo dos meus pais pela educação, a amizade dos amigos de província, a literatura… tudo se misturava, num calidoscópio singular, acompanhado por retalhos de diálogos: “Vamos, rápido!…”; “O quadro é muito sério…”; “Acácio tem alguma doença pré-existente: pressão alta, diabetes, asma…?”
O galopar da jumentinha do Wilson levava a sacolejar o meu corpo inerte, disposto sobre as tábuas nuas da carroça, no rumo do hospital. A mão fria de Clauder a segurar a minha. O seu olhar de preocupação tornava a minha agonia ainda maior. Quando fazemos um companheiro sofrer, a nossa angústia se multiplica. Penitenciei-me, relembrando as minhas últimas diatribes assacadas sobre ele. “Ó Deus, como fui ingrato com o Arcanjo!”; pensava, enquanto apertava cada vez mais a sua mão.
“Você vai ficar bem, Acácio! Confie em mim, em Deus e na medicina”, repetia Clauder, numa espécie de mantra. Na certa pondo em prática a força do verbo “que se faz carne e habita entre nós”, como gostava de repetir nas suas lições reles de autoajuda.
A entrada no hospital, sobre uma maca e com uma máscara de oxigênio, toldou-me a vista com a pátina das lágrimas. O corre-corre da equipe médica, o soro na veia, as medicações intravenosas, a luta de Clauder Arcanjo para permanecer ao meu lado: “Daqui ninguém me tira. Assino um termo isentando o hospital de qualquer responsabilidade, mas serei o enfermeiro do meu amigo…”. Aquilo tudo me fez pensar, pela primeira vez, na possibilidade de encarar a minha passagem para o Além.
Quis rezar um terço, não conseguia passar sequer do primeiro mistério. Voltava, então, a reiniciá-lo. E, no controle das contas do terço imaginário, me perdia novamente. Pouco depois, não sei se pelo cansaço ou pela medicação, não ouvia mais nada ao meu redor, apenas voz e imagens turvas na mente inquieta. Meus pais a me abençoarem, meus amigos a vibrarem com os meus projetos e as minhas ideias mirabolantes, a viagem de ônibus para Fortaleza, o cheiro diferente da cidade grande, o medo de me perder naquelas ruas e avenidas enormes e tumultuadas, as piadas contra mim, “o matuto provinciano”…
De repente, silêncio. Num fundo branco e pespontado por uma luz de cor azul–marinho. Neste campo de silêncio e discreta luz, vi-me calmo. Nada mais me doía, não sentia o meu corpo. Melhor, julgava-o leve, quase a levitar.
Levavam-me em direção ao alto. Via a cidade de Licânia por cima, próximo já das nuvens. Lá embaixo, a Matriz de Senhora Sant’Anna, a Praça do Poeta, a casa dos meus pais, a pensão do Raul, o Mercado Público, o Caneco Amassado, a Avenida São João, a ribeira do Acaraú, o vale com o verde das carnaubeiras e das oiticicas… As ruas de Licânia vazias, a província indefesa e varrida pelo vento Aracati.
Alguém, então, candidamente me soprou: “Venha, irmão! Já é hora de prestar contas ao Senhor!”
Neste exato instante, dei com o lamento de um felino: era Nabuco.
“Nabuco, bichano! Nabuco, estou seguindo para os braços de Deus!”, e o miado de Nabuco mais se me apiedava.
“Venha, irmão! Já é hora…”, a voz angelical a insistir.
“… recomendo a extrema-unção”; alguém propôs cá embaixo.
Quando o azul se fez clarão celestial, eu me vi diante da Porta do Céu. Antes de entrar, alguém me soprou aos ouvidos uma mensagem indecente, seguida de uma dedada hiperbólica e apocalíptica no meu fedorento.
De imediato, renunciei ao chamado de Deus e despenquei da carroça celestial bem em cima do meu leito, a protestar:
— Fiofó de Acácio tem dono! Com Covid ou sem Covid.
O hospital foi invadido por aquele meu grito escandaloso e pavoroso. Eu, zangado com o dito e a sondagem anal, a esculhambar com Deus, o Diabo e com todo mundo que me cercava:
— Meu fiofó tem dono, magote de corno!
Na manhã seguinte, recebi alta hospitalar.
Hoje, estou aqui, a encerrar mais esta página do meu diário.
Às vezes me inquiro se a proximidade da morte me fará um homem melhor. Certas coisas só o tempo me trará a resposta. Habemus tempore.
Contudo, se porventura um filho de uma égua me indagar se eu gostei mais de ouvir a dita mensagem ou de receber a dedada milagrosa… saberei logo que foi o sacana do Clauder Arcanjo quem deu com a língua nos dentes.
Ele que não se faça de besta em revelar esse meu segredo ! Se é que ainda tem amor pela vida.