O DESAFIO DA VIDA NAS CIDADES

Dezembro é um mês recheado de simbologia, principalmente por suas datas comemorativas. Há 75 anos, por exemplo, foi firmada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, referencial obrigatório para medir o grau de justiça das democracias modernas. Também celebramos com pesar os 35 anos do covarde assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, símbolo da luta da humanidade por uma sociedade ecologicamente sadia e justa. Como estes, são tantos os momentos marcantes vividos neste mês que nos possibilitam uma reflexão mais profunda sobre nossas vidas, sobre a convivência humana em nossas cidades.

Para o mundo ocidental, há uma data central em dezembro: o nascimento de Jesus de Nazaré. Uma criança que veio apresentar ao mundo uma nova proposta de vida em comunidade. Se o desenho da sociedade política de então pode ser representado por uma pirâmide, na qual em seu cume estava o soberano – faraó, rei ou imperador -, detentor de todo poder (legitimado como o representante de deus na terra), e na sua base estava o povo que não possuía um valor em si mesmo, depois de Jesus esta configuração começa a mudar. Com a sua revelação de Deus como um Pai que ama todos os seus filhos e filhas sem distinção, homens e mulheres, por mais humildes que sejam, passam a ser herdeiros e possuidores de realeza (dignidade) em si mesmos, pelo simples fato de ser humanos. 

Jesus vai mais além: o seu Deus é uma Pessoa (Subjetividade) em movimento, portadora de Liberdade, Vontade e Amorosidade absolutas, que não está distante, mas presente no meio da humanidade reunida em seu nome. Subjetividade fundamentadora da liberdade da qual todos os humanos são portadores. Dizer Humano significa dizer Liberdade. De fato lê-se nos evangelhos: “onde dois ou mais estão unidos em meu nome, Eu estou no meio deles”. Portanto, com essa afirmação, Jesus sinaliza para um novo desenho de convivência social. Não piramidal, mas circular, onde a expressão do poder soberano é o resultado da liberdade, igualdade e fraternidade que circulam entre os membros da comunidade humana engajada na construção do bem comum.

Apresenta-se como sinal de contradição, de discordância, de desobediência à ordem dominadora estabelecida e manipulada pelos poderosos: “Ouvistes o que foi dito; Eu, porém, vos digo!”. A experiência de vida de Jesus de Nazaré sustenta sua afirmação. Ele não nasceu num palácio imperial, mas num estábulo, após haver sido rejeitado pelas hospedarias. Rodeado pela Natureza, e por aqueles que dela cuidam e que com ela realizam sua trajetória existencial (pastores e agricultores), apresenta uma ecologia amorosa como modelo de organizar a vida na terra.  Não se coloca acima, mas ao lado da humanidade, em suas dores e realizações: como exilado no Egito; como filho ajudando seu pai no trabalho de carpintaria; como mestre, visitando os vilarejos para demonstrar com sua reflexão uma nova forma de pensar e viver o mundo.

Viveu com absoluta convicção sua fé na revolução de que é capaz o amor, ao ponto de ser condenado pelo modelo piramidal de então. Na cruz [a pior das condenações políticas] visitou o “último lugar”, igualando-se aos marginalizados, empobrecidos e perseguidos, assumindo todas as consequências por desafiar o Império.

Entre os militantes seguidores do seu movimento destaca-se Paulo de Tarso: um fariseu, escritor culto, excelente articulador e organizador de grupos, que entra em contato com contemporâneos de Jesus, por volta do ano 35, ficando bastante impressionado com o que presencia. A partir de então, começou a produzir uma doutrina, baseada nesta experiência pessoal com os militantes do movimento de Jesus, alicerçado em três princípios básicos: Liberdade, Universalismo, Amor.

A prosa de Paulo não é de um historiador ou sociólogo, preocupado na pesquisa dos fatos reais. Ele trabalha de forma exemplar uma literatura rica de metáforas visando a suscitar disposições nos corações e mentes de quem o lê ou ouve. Por exemplo, em Paulo, “sopro” (espírito) significa dinamismo; “ungido” (cristo) quer dizer disposição, fortaleza, determinação; “carne” representa fraqueza. Paulo tem plena consciência do seu tempo no qual a vida de um trabalhador nas grandes cidades romanas geralmente é muito breve (um escravo, em média, não vive mais do que vinte anos), além do que há uma grande incidência de suicídios. E são esses trabalhadores e camponeses que formam a base social do movimento de Jesus.

Na primeira Carta aos Coríntios, Paulo afirma: “Entre vocês poucos são os sábios, segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Pois Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes”. (1Cor 1, 26). Ou seja, o movimento iniciado por Jesus arranca os trabalhadores de silêncios milenares, no qual só quem falava eram os nobres e sábios, e os coloca no palco da história. Portanto, a prosa de Paulo é fundamentalmente religiosa: num mundo escuro e pesado em que vivem os trabalhadores das cidades romanas, a religião é a única luz e a última trincheira, o último recanto onde eles conseguem recuperar a dignidade dentro de um sistema escravista. A fala de Paulo ressoa no silêncio dos que não contam aos olhos da sociedade: “Vocês não receberam o Sopro de escravos para terem medo, mas o Sopro de filhos pelo qual chamamos Abba”. Um Sopro que não assusta, mas consola e defende com firmeza os que não dispõem de advogado que os defenda, impulsionando-os para a libertação.

Uma passagem clássica da literatura paulina é a reflexão sobre o Amor. De cara ele adverte que Amor não se restringe à generosidade: “Posso compartilhar tudo o que tenho para nutrir as bocas famintas, mas se não tiver o amor, nada fiz”. (1Cor 13). Para Paulo, o Amor não serve para corrigir desequilíbrios na sociedade, mas para romper com o equilíbrio da falsa ordem. O Amor funciona fora da ordem, para desmascarar aparências de harmonias, e desse modo gestar a emergência de algo novo. O Amor não serve para ocultar problemas, mas para ativar a transformação. Amor é paciência, benevolência, justiça e verdade. É silencioso, concreto e prático. Para o Amor, não há judeu nem grego, nem homem nem mulher, nem escravo ou livre, todos são Um no Ungido. Circuncisão não é nada, incircuncisão não é nada.

O exemplo e a mensagem de Jesus de Nazaré nos desafiam a rever nosso compromisso social na construção da vida em nossas cidades. Para podermos ter cidades novas, é preciso um compromisso concreto com uma prática política universalista, na qual todos – sem exceção – estejam incluídos de forma responsável, participativa, justa e fraterna.  

 

 

 

 

 

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .