O Castelo Exterior

NO ANO DO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO de Chiara Lubich, muitas justas homenagens lhe são prestadas para esta personalidade que marcou a segunda metade do século XX por sua obra espiritual e humana fundada na radicalidade do amor, conforme sentenciou o Papa João Paulo II, da qual a Obra de Maria em toda a sua expressão – Movimento dos Focolaresnasceu com a obrigação de ser sua fiel depositária e continuadora.

 

Detentora de mais de uma dezena de Doutorados Honoris Causa, toca-me a mim em particular o título a ela concedido pela Universidade Católica de Lublin (Polônia), no junho de 1996, em Ciências Sociais. Na Laudatio”, o diretor-presidente da faculdade, Adam Biela, fundamentou os motivos da atribuição do doutorado na histórica revolução copernicana que mudou um paradigma arraigado e centrado no sistema geocêntrico, transformando não apenas o espírito científico de sua época, mas influenciando a cultura, a tradição, a percepção social, religiosa e política. E Copérnico o fez por um caminho muito bem preparado metodologicamente,empiricamente, teoricamente.

 

Do mesmo modo para Biela, Chiara gerou uma inspiração revolucionária para a elaboração de um novo paradigma nas ciências sociais, redescobrindo não o individualismo, mas a comunidade como lugar existencial privilegiado para o desenvolvimento humano sadio, a partir da experiência de doar-se, indo ao encontro das vítimas do nazismo e do fascismo, na Segunda Guerra Mundial, em meio aos riscos dos bombardeios e pela partilha dos seus bens com os que nada possuíam. Esta experiência histórica foi fundamental para alavancar a espiritualidade da unidade lubichiana por meio da qual germinaram estruturas psicossociais que possibilitam a construção de relacionamentos trinitários.

 

Como efeito ilustrativo, com relação à necessidade de encontrarmos novas categorias e novos sujeitos, para poder pensar novas realidades, podemos recorrer ao processo germinal da formulação da Teoria da Relatividade. Albert Eistein teve de utilizar-se de um paradigma geométrico não-euclidiano para realizar os cálculos necessários à sua teoria. Ele afirmava que atribuía grande importância a interpretação não-euclidiana da geometria, uma vez que se não a conhecesse nunca teria sido capaz de desenvolver a teoria da relatividade. Na geometria euclidiana, “pi” (uma proporção numérica definida pela relação entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro) é considerada como uma constante universal. Mas na geometria plana hiperbólica, “pi” deixa de ser constante e universal, dependendo do movimento, espaço-tempo  e da gravidade. Com isso, saímos do paradigma determinista sólido e adentramos o paradigma relativista energético, das micropartículas e da luz.

 

Uma novidade paradigmática no campo da mística apresentada pela espiritualidade lubichiana é aquilo que Chiara chama de Castelo Exterior: uma revolução copernicana ao Castelo Interior desenvolvido pelos grandes místicos, dos quais se destacam Teresa De Ávila e João da Cruz. A metáfora apresentada por Teresa para explicar a sua mística é a comparação do espirito humano (a alma) como sendo um castelo que possui muitas belas moradas, mas é no centro a morada principal onde habita Deus; o caminho místico é justamente o de chegar ao centro do castelo para o encontro íntimo com Deus. Deste encontro a alma poderá contemplar sua grande dignidade e formosura enquanto criatura feita à semelhança do seu Criador. Portanto, em Teresa esse percurso se dá pela oração, pela meditação e pela renúncia ao mundo exterior para mergulhar no centro da alma.

 

Chiara Lubich propõe outra Ascese. A renúncia necessária para atingir a Mística, ou seja, ao encontro com Deus, se dá pelo dom. Portanto não se trata de renegar, mas de amar. Sua metodologia pode ser resumida em cinco pontos básicos: amar a todos; tomar a iniciativa no amor; fazer-se um; amar os inimigos; amar reciprocamente. As equações construídas a partir desta perspectiva são totalmente diferentes daquelas existentes no paradigma moderno, cuja centralidade e realização humana estão no acúmulo individualista pelos sujeitos definido pela força do Mercado. A base relacional fundamentada em dons recíprocos alimenta o reconhecimento mútuo dos sujeitos envolvidos nessa dinâmica social. Segundo Lubich, a Mística ocorre justamente na realização da reciprocidade dos dons. O fundamento evangélico dessa operação encontra-se no texto de João (15, 13): ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos; somando-se à sua Primeira Carta (1 Jo 4, 16): Deus é amor, quem ama permanece em Deus e Deus nele. Eis a Mística social lubichiana. Universal, na medida em que é acessível a qualquer pessoa. E como lembra o filósofo francês Alain Badiou (1937-hoje), somente há singularidade se houver universal; senão, fora da verdade, somente há particular. O sujeito é aquele que sustenta o universal.

 

O desastre da hecatombe promovida pela pandemia da Covid-19 parece ser um palco muito provocador para o experimento de novas práticas capazes de indicar a construção de novos vínculos sociais mais saudáveis e mais inclusivos de todos os membros da humanidade global. O vírus não tem pátria, nem dinheiro ou religião. Está a demonstrar com essa parada global obrigatória da atividade econômica que nossa condição humana precisa de um novo sistema socioeconômico que valorize a vida de todos e todas as vidas. O castelo exterior lubichiano apresenta-se como uma das estradas possíveis de ser trilhada neste século XXI por um grande número de homens e mulheres dos quatro cantos da Terra visando a uma nova etapa da história humana.

 

Concluo retornando a Alain Badiou. O pensamento não espera e jamais esgotou sua reserva de força, a não ser para quem sucumbe no profundo desejo da conformidade, que é a via da morte. Os acontecimentos verdadeiros nos surpreendem no momento mais silencioso. Como diz Paulo em uma de suas maravilhosas cartas, “o dia do Senhor chegará como um ladrão na noite”. Mudanças de paradigmas acontecem.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .