O BUMERANGUE, por Rui Martinho

Éramos acomodados, passivos, um gigante adormecido. Havia quem invejasse o protagonismo das massas argentinas, embora os vizinhos da fronteira meridional só tenham sabido destruir a prosperidade conquistada antes do “empoderamento” do povo. As tecnologias da informação quase extinguiram o segredo, difundindo informações. Quebraram o monopólio dos formadores de opinião. As manipulações ficaram sujeitas ao crivo da crítica, sem o controle exercido pelas lideranças sindicais e organizações da sociedade civil aparelhada, sem a mediação dos “diretores de consciência”.

O atual protagonismo das massas não é tutelado pelos “esclarecidos”. O debate político foi democratizado. Escapou ao controle dos catequistas. Insultos e ideias estapafúrdias ganharam espaço. Mas o senso comum não necessariamente significa rompimento com o bom senso. O primeiro é a tendência dominante, nem sempre sensata. O segundo é a percepção lúcida da realidade. Era fácil fazer prosélitos quando a pregação visava a distribuição de renda de quem ganha mais do que o catecúmeno. A sedução de quem transforma o sentimento inferior da inveja na virtude do afã de justiça social é irresistível.

A economia de mercado diminuiu a mortalidade infantil, aumentou os anos de escolaridade e reduziu o analfabetismo, aumentou os anos de vida e democratizou o acesso aos bens que representam conforto. A teoria da pauperização caiu por terra. Foi preciso substituir o discurso sobre a miséria pela crítica ao “consumismo”. Quando o homem não consome é exclusão, mas se consume é “consumismo”. Os indicadores de qualidade de vida são omitidos.

A crítica ao consumismo, porém, não é tão convincente. O apelo revolucionário foi então redirecionado para as minorias relacionadas com os costumes. A facilidade de fazer prosélitos propondo vantagens materiais, porém, deixou de ser tão sedutora, embora continue produzindo algum efeito. Mas estimular mágoas e rancores de quem sofre discriminação é mais fácil. Deflagrou-se então a revolução cultural. Revoluções têm o DNA da agressividade. Pessoas vinculadas aos padrões da cultura tradicional então reagiram por sentirem-se agredidas. O argumento de autoridade dos “sábios” que pretendem tutelar a sociedade foi abalado. Sem medo de contrariar os “diretores de consciência” o povo passou a fazer contra eles o que eles mesmos recomendavam: agir politicamente, exercer a crítica. A internet facilitou a luta. O que foi dito para ser usado contra o outro voltou como um bumerangue. Então o senso comum aproximou-se mais do bom senso do que as teorias de autores renomados, com sofismas cheios de falácias.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.