”Isto não pode durar, é demasiadamente estúpido.”
Albert Camus, A peste
Piero Gobetti, jornalista e ativista liberal italiano assassinado por fascistas em 1926, afirmava, três anos antes, no seu “O fascismo como autobiografia da nação”: “Apesar de ser um povo ‘neto’ de Maquiavel, não conseguiríamos nos convencer de certos defeitos substanciais”, pelo que “o fascismo na Itália é uma catástrofe, uma indicação de infantilismo decisiva, pois marca o triunfo da facilidade”. E concluía que “o fascismo foi algo a mais; foi a autobiografia da nação”. Em 1994, exatos setenta e um anos depois, vislumbrando o surgimento de “novos despotismos”, com a deterioração dos partidos e da classe política e a consequente emergência de Silvio Berlusconi, Norberto Bobbio salientava: “Frequentemente me pergunto se o berlusconismo não é uma espécie de autobiografia da nação, da Itália de hoje”.
Mas, deixando a Itália e focalizando este país de “mil-e-tantas misérias”, materiais e espirituais, pode-se perguntar: será o bolsonarismo uma autobiografia do Brasil? De fato, sem desprezar as suas comorbidades crônicas, a análise da conjuntura, a partir de um conjunto de indicadores, tem destacado que a sociedade brasileira está doente: aqui manifestações antidemocráticas de massas e de indivíduos isolados requerem o retorno do AI-5, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, a relativização da Constituição Federal; ali se proclama a existência de um “poder moderador”, cujo titular seriam as Forças Armadas; acolá se destila o ódio contra o pensamento crítico e a intelectualidade, a ciência, a arte e a cultura; ora se manifesta ojeriza pelo meio-ambiente saudável. “E la nave va”…
A propósito e por associação de ideias, na saga do grande sertão e veredas, Guimarães Rosa faz o jagunço Riobaldo, além de constatar que vive num “país de ‘mil-e-tantas misérias”, refletir sobre o piorque poderia acontecer. Cevado na violência e vingança, vivendo em guerra feroz e continuada contra outros bandos de jagunços e enfrentamentos contra forças policiais, Riobaldo, o Urutu-Branco, o Tatarana, dá-se conta da existência dos catrumanos. Horrorizado, o jagunço entra em estado de choque ao ver e pensar esses seres das cavernas, ignorantes das regras e leis, religião e moral, “homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas”. Que “viviam tapados de Deus, assim nos ocos”, e, embora pobres, “às vezes não tinham gordura nem sal”, estavam “atravessados de armas, e com cheias cartucheiras”. O jagunço medita, então, entre assustado e profético: “E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mís e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades”. Assim, como é que “iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade”. Pelo contrário, “haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar”.
Como diagnostica Luiz Werneck Vianna, as eleições de 2018, tanto a presidencial quanto as legislativas, carrearam para a política brasileira “um tsunami de votos de uma ralé de novo tipo”, com ogoverno acabando de trazer para o proscênio, inclusive, “o mundo das milícias”, virtuais ou não. Evidentemente, tal estado de morbidez política não se gerou com tais eleições, os seus resultados consistiram talvez muito mais como fruto daninho de uma árvore com muitos galhos em decomposição social, moral e política, por conta da idiotia do consumo, do culto acrítico de personalidades midiáticas, da busca do conhecimento fútil e fácil, do exibicionismo sem valores, da discriminação canhestra entre “amigos” e “amigos” na política, do desatar do ódio contra as pautas identitárias de gênero, sexo, raça, e contra os de pensar diferente. A tudo isso, acresce–se um estilo prevalecente de fazer política próprio de uma sociedade oligárquica, cuja meta fundamental é a utilização do Estado para a obtenção de benefícios privados.
De fato, o bolsonarismo parece ser mais efeito do que causa dos males democráticos e republicanos. Não convém olvidar o esgarçamento da política que seu deu nos últimos anos desta década, em que, p. ex., políticos de quase todo o espectro partidário foram assíduos frequentadores das delegacias de polícia e dos juizados criminais, coroando-se com a presença dos presidentes ou ex-presidentes do Partido da Social da Democracia Brasileira, do Partido dos Trabalhadores e do Partido Progressista (atual Progressistas) não nos parlamentos nem nos comitês partidários, mas em penitenciárias.
Por todo o estado de coisas, os aspectos mais visíveis da política brasileira no momento respondem afirmativamente ao que foi posto acima como interrogação: sim, o bolsonarismo é uma autobiografia do país. Um país em que – tomando de empréstimo a metáfora roseana – catrumanos que se assenhorearam do poder político e repelem o Estado de Direito, a democracia, a república, os valores da ciência e da cultura; cultivam política que, sem empatia e sem compaixão, não leva em conta os setenta mil mortos da pandemia de Covid-19; desprezam a natureza. E, em contraposição, justificama tortura, a brutalidade policial endêmica, o armamentismo, a ingerência militar sobre o poder civil.
Todavia, nem tudo é decadência e obscurantismo, boçalidade e degradação neste país de “mil-e-tantas misérias”. Pelo contrário, anima pensar que o bolsonarismo é apenas “uma” das autobiografias do Brasil. Nos interstícios da sociedade civil e no compasso dos seus movimentos, observa-se a tentativa de transcender o caos social, sanitário, econômico e político, vislumbra-se um núcleo de resistência contra os despotismos – os velhos e os novos –, núcleo que busca escrever a autobiografia alternativa do Brasil. Desta feita, uma autobiografia baseada na busca da qualificação da democracia e da república, da efetivação dos direitos fundamentais, da inspiração nos valores iluministas e modernos, da empatia com a solidariedade e compaixão para com a vida humana, enfim, com a realização do “princípioesperança” contido nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, inscritos no art. 3º da Constituição Federal.