14h27. O jornalista Hélio Schwartsman parece que está sendo investigado porque logo depois que o presidente divulgou que estava contaminado publicou um breve artigo no qual dizia que esperava que Bolsonaro viesse a óbito, não por razões pessoais, não por ter nada contra a pessoa do presidente em si, mas como a morte cessa boa parte das ações de uma pessoa (a morte em si de quem quer que seja ainda pode mover durante muito tempo as peças de um jogo) e as declarações do Bolsonaro em relação à epidemia global tendiam a influenciar o público no sentido contrário a prevenções e precauções baseadas no discurso científicos, desde que ele parasse de falar, e essa é uma das ações que a morte consegue fazer que cessem, pelo simples fato conhecido nos filmes de pirata e velho oeste de que os mortos não falam, as consequências negativas dos seus discursos recrudesceriam. O mais provável — por mais que intimamente ninguém possa controlar e nem mesmo julgar os desejos homicidas latentes de cada um, e mesmo que se declare por escrito uma vontade real pela morte do outro, alegando motivos baseados na lógica e que pretendam isenção total, não é impossível que o sujeito opere no próprio íntimo uma perfeita cisão entre aquilo que ele quer dizer e aquilo que precisa ou pelo menos pode dizer — o mais provável é que o jornalista estivesse sendo irônico e sarcástico. Ainda é possível escrever com ironia e com sarcasmo; mas é arriscado cada vez mais: mesmo os leitores mais persistentes agora tendem a ler tudo de modo literal. Ainda temo que Schwartsman odeie e deseje a morte do presidente. Menos de trinta anos atrás censuraram uma música em que alguém dizia que estava feliz porque tinha matado o presidente. Sempre vai haver quem odeie o presidente independente de quem seja o presidente e quem ficaria muito feliz se o pudesse matar; não é possível controlar o que vai na cabeça das pessoas; é impossível dizer quanta gente não sorri internamente à ideia de destruir toda a vida conhecida.
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9 de julho. 1h41. O povo de uma aldeia, segundo uma lenda japonesa, estranhou que se maior guerreiro parecesse ainda inconformado mesmo depois de todos os seus inimigos terem morrido pela ação bélica de suas mãos; sua sede de vingança e de justiça deveria estar saciada, mas quando, temerosos, lhes perguntaram porque parecia tão angustiado, respondeu: “Já não posso lhes fazer mais nada e ainda os odeio”.
1h45. Outra lenda japonesa. O homem adiava sua vingança contra um outro, que já tinha perdido tudo e em todos os sentidos vivia na miséria. Por que não se vingava de um inimigo quando era tão fácil era a dúvida constante, e se eventualmente lhe perguntassem ele dizia: “Não posso me vingar antes que ele tenha o que perder. Dores pouco fariam a ele em seu estado de miséria. Se o levasse a morte podia ser até que me agradecesse”. Dizem também que não por covardia nem por precaução, mas para efetuar uma vingança secreta o homem miserável recusou todas as chances que teve de sair da miséria: não queria, por sua vez, dar ao inimigo o prazer de concretizar sua vingança.
1h50. Um dos inúmeros males que manifestações recentes da política brasileira foi degenerar as possibilidades e os modos de sentir ódio. — A princípio, independe do processo de cozimento e do resultado final, há dois tipos específicos de ódio, o que busca a aniquilação do inimigo e o que busca o seu sofrimento e o testemunho do seu sofrimento. Há graus diferentes em ambos os casos e, claro, formas híbridas dos dois tipos. O que me preocupar em termos estéticos e éticos é como restabelecer o sentimento como potência humana. Porque, senhoras e senhores, mesmo que eu não queira ser pessimista, não sei se vocês perceberam, mas podemos ter fracassado no amor, se não foi o amor que fracassou em nós, se não estávamos preparados para o amor ou esperamos muito dele, ou melhor, esperamos dele que operasse em nós milagres que estavam além do que podíamos ou que para acontecer em nós teriam que acontecer contra nós ou apesar de nós. Mas ainda me resta a dúvida: eu sempre caio numa argumentação circular: como eu posso redimir o ódio.
2h03. Não espero nem desejo que o presidente morra; ao contrário do jornalista Hélio Schwartsman não creio que isso resolveria verdadeiramente as questões relacionadas à pandemia; por mais que vivo o presidente em exercício sobretudo atrapalhe. Também não desejo sua sobrevida pra que um sofrimento insuportável lhe advenha e se prolongue; meu ódio pelo presidente cessará quando o presidente desocupar o cargo e eu já não precisar pensar sobre ele; pode até mesmo ser que eu passe a odiar o próximo presidente e que me especialize nisso. (Chego à iluminação de que o que define a qualidade dos ódios são as qualidades daquele que odeia unidas às qualidades de quem é odiado, da mesma forma que se pode medir a estatura de alguém pelas estaturas dos seus inimigos.) Desejar a morte ou a longa enfermidade ou a decrepitude, não digo pela minha pretensão de elevação espiritual, que às duas da manhã costuma ser nenhuma, mas por mero senso de lógica, justiça e pragmática: ninguém está especialmente condenado a morrer, pois a morte não é o privilégio às avessas ou a distinta maldição de ninguém em especial. Deveria ser o ponto de convergência na qual os ódios, recíprocos ou não fizesse sua trégua: é aqui o ponto fraco comum a todos, a mais obscena lembrança de que também o ser humano é um animal, por menos que goste da ideia, e que como animal está fadado a morrer. Mas que isso ocorra ao menos com alguma dignidade, e sem que seja desnecessário, sem que ocorra quando poderia ser evitado. É essa a parte que o próprio presidente não é capaz de compreender, porque não se importa com isso. E não é o único que não é capaz de entender. Sua morte eventual poderia mesmo fazer verter de uma parte da população as lágrimas e o luto que as até agora quase setenta mil vítimas fatais não conseguiram.
A comoção só não seria maior que o profundo esquecimento que vai se abateria sobre ele mais rápido do que se imagina.