Nosso assombro produz conhecimento?

SEGUNDA-FEIRA, 18, mais um adolescente assassinado pelas balas do Estado brasileiro: João Pedro, 14 anos de idade, negro, morador do Complexo do Salgueiro no Rio de Janeiro, atingido por um tiro de fuzil do COE (Comando de Operações Especiais), filho de um trabalhador autônomo. Pelo relato de uma testemunha ocular, os policiais invadiram a casa do jovem, disparando uma saraivada de tiros, impedindo que familiares e amigos lhe prestassem socorro. Impossível de imaginar uma cena como essa ocorrendo num apartamento da beira mar do bairro de Boa Viagem, em Recife, ou na Aldeota, em Fortaleza, ou na região do Lago Paranoá, em Brasília. Casas Grandes do tempo presente.

Em 20 anos de guerra no Vietnã (1955-1975) morreram 50.000 soldados invasores estadunidenses. No Brasil esse número ocorre *anualmente*, referente apenas a jovens de 15 a 29 anos de idade. Essa estrutura criminosa mantida pelo Estado brasileiro tem sexo, idade, cor, território e renda. Portanto, o assassinato de João Pedro não foi um crime acidental. É estrutural. Resultado de nossas relações de poder, renda e sentido societário, da forma como são concebidos e distribuídos em nossa história. Sérgio Moro, apoiado pela Rede Globo, quer avançar com a violência estrutural do Estado brasileiro com seu projeto “excludente de ilicitude”, mais conhecido como Licença para Matar.

Para nosso sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), no livro “Circuito Fechado”, os 400 anos de regime escravocrata deixaram profundas cicatrizes no tecido da sociedade brasileira, mantidas estruturalmente em nossa contemporaneidade, com a criação de dois mundos distintos e opostos gerando um “vínculo social” baseado na extrema separação de cor, de renda e de espaços sociais como ocorreu durante o sistema escravista. Uma acomodação arcaica que ainda não foi superada. Até mesmo o sociólogo Norbert Elias, em seu “O processo civilizador, acusado por muitos autores de ser um eurocentrista, confirma que na sociedade fundada no escravismo a economia das pulsões ocorre de maneira diferente daquela originada no trabalho livre.

No Brasil, o humano escravizado era percebido e utilizado como *uma coisa, em duplo sentido*. Por sua força de trabalho, gerava com sua energia o enorme excedente apropriado pelo branco escravizador. Em segundo lugar, o escravizado era uma mercadoria valiosa, cujo comércio propiciava fabulosa acumulação de capital mercantil, permitindo aos senhores de escravos e ao Estado brasileiro– desde a Colônia até o Império – amplo desenvolvimento econômico à custa da exploração desumana do sistema escravista, elemento estruturador da sociedade brasileira até o final do século XIX.

Florestan destaca que essa base material formatou uma organização societária com um núcleo central composto por uma pequena elite branca mandante, e por uma extensa população de escravos negros, indígenas e mestiços. Entre essas duas faixas, havia ainda uma terceira composta de população de homens pobres e livres, identificada com o grupo dominante em termos de lealdade e solidariedade.

Um código rígido vai regular as relações sociais entre os membros dos estamentos brancos e entre estes com a população economicamente inferior, ensejando várias formas de dominação definidas por uma rígida hierarquia social que, ao fim e ao cabo, colocava a população negra e mestiça no último nível da escala, objeto de *toda ordem de violências*. Diz Fernandes: “A força bruta, em sua expressão mais selvagem, coexistia com a violência organizada institucionalmente e legitimada pelo caráter sagrado das tradições, da moral católica, do código legal e da razão de Estado. O mítico paraíso patriarcal escondia um mundo sombrio, no qual muitos eram oprimidos, embora poucos tivessem acesso à condição de opressores”.

Walter Benjamin (1892-1940), sociólogo e filósofo alemão, em suas “Teses sobre o conceito de história”, diz-nos que a tradição da história dos oprimidos nos ensina que o *Estado de exceção* em que vivemos é na verdade a regra geral. É preciso construir um conceito de história que corresponda a esta verdade. O nosso assombro não pode ser um assombro qualquer como que, de repente, surpresos pela violência que ocorre no tempo presente. Afinal a violência é resultado do sistema capitalista de divisão internacional do trabalho fundado, internacionalmente, na exploração dos países centrais sobre os países periféricos, e localmente na exploração da classe dominante sobre a classe oprimida. Um assombro superficial não gera conhecimento. É preciso desenvolver o assombro filosófico para ir-se à raiz da questão. Como diria Dom Hélder Câmara (1909-1999), “quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo; mas quando indago sobre as causas da pobreza, pintam-me de comunista”.

Também o pensador italiano, Giorgio Agamben (1942-hoje), formula em sua teoria a concepção de que no interior das democracias ocidentais contemporâneas convive o Estado de exceção como permanência biopolítica, que tende a tratar amplos contingentes da população como “vida nua”, ou seja, viventes desprovidos de proteção política, jurídica e até teológica, reduzidos à mera condição de vida biológica, vida animal.

Como descreveu o ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ, é a reprodução de uma espécie de necropolítica, de uma violência sistêmica, que se associa à já vergonhosa violência física e à violência ideológica, mais silenciosa, porém igualmente perversa, e que se expressa nas manifestações de racismo, de misoginia, de discriminação sexual e intolerâncias a grupos minoritários. Tudo isso, somado, gera um sentimento de insegurança, de desesperança, de medo, ingredientes suficientes para criar uma ambiência caótica.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .