MESA DE BAR – Ordinários ofícios (Parte II), por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

– Amigos, agradeçamos aos deuses o néctar que ora nos servem e divinamente sorvemos. Excelente, como sempre! – O decano retomou, assim, os trabalhos da confraria. – Confesso haver-me lembrado de uma frase que, se a memória não me trai, o escritor francês Victor Hugo a inscreveu em seu clássico OS MISERÁVEIS: “Deus dá o ar aos homens e a lei o vende!”. Arrisco-me, agora, a proceder esta atualização, bem ao molde brasileiro: “E os políticos o subtraem ao império da lei, em benefício próprio”. Privam-nos até do que naturalmente nos pertence. Sufocam-nos, pois. Eles, os eleitos… os que se autorrotulam lídimos representantes do povo… nossos, portanto. Ufa! Sem mais delongas, prossigamos com nossos “ordinários ofícios”.

– Mestre, amigos, já faz alguns anos que doo uma pequena quantia mensal a um fundo de assistência a crianças acometidas de câncer. Faço isso mediante boletos que me são enviados pelos Correios. Nada de muito expressivo, repito. Nas minhas anuais declarações de renda ao Fisco, sempre tratei tais valores como doação, o que na verdade são. Tal procedimento provocava, obviamente, a redução da base de cálculo do imposto devido pelo total doado – algo em torno de trezentos e cinquenta reais, nada mais que isso – no curso de cada ano de referência.

“No ano passado, a restituição a que fazia jus não veio no primeiro lote, apesar de ser contribuinte sexagenário e haver declarado já nos primeiros dias do prazo legal para tal providência. Nos oficiais controles de acesso virtual, a informação que obtinha dava conta de que a declaração se encontrava “Em processamento”. Como também não constou do segundo lote, decidi consultar a Secretaria da Receita Federal. Portando o envelope pardo contendo todos os papeis relacionados ao assunto, dirigi-me àquela repartição pública, onde, após apresentar resumidamente as razões que me levaram até lá, recebi, no balcão de atendimento ao contribuinte, a senha para o setor de Malha Fina.

“Experimentei, enquanto esperava o chamamento eletrônico, um certo temor. Afinal, tudo me levava a crer que o leão me houvera pegado… mas em quê?! Nada conseguia vislumbrar que pudesse sugerir ato impróprio, sujeito à revisão.

“O solícito auditor fiscal que me atendeu, após digitar o meu CPF e interpretar os dados refletidos na tela de seu notebook, pôs-me a par da realidade: ‘O senhor, ou melhor, a sua declaração está na malha fina. Tal fato decorreu de uma doação nela incluída, certamente de forma irregular. Caso o senhor queira excluí-la, eu posso liberar o reprocessamento e, certamente, sua restituição será incluída no próximo lote. Agora, se o senhor quiser esclarecimentos sobre a irregularidade, eu posso encaminhá-lo ao setor de Doações.’

“Como manifestei o interesse pelos ‘esclarecimentos’, um outro procedimento se iniciou. E eu tive de aguardar novo chamamento no painel eletrônico, o que demorou alguns minutos.

“Um outro auditor fiscal, com jeito de quem estava contando as horas para a aposentadoria, já me atendeu pedindo os comprovantes da doação – com certeza, o colega dele, o da Malha Fina, já fornecera dados sobre o meu questionamento. Entreguei-lhe os doze boletos, devidamente autenticados e onde se destacavam a razão social da entidade beneficiária e seu CNPJ. O olhar superior e descompromissado do agente público ganhou um recheio: o sorriso sarcástico. Uma voz de deboche ecoou em meus ouvidos atentos: ‘Sob o ponto de vista fiscal, isso aqui não tem legitimidade alguma. É lixo. O processo de doação tem de se revestir de todos os procedimentos previstos em lei específica.’ Eu o interrompi: ‘Doutor, há mais de cinco anos faço esse tipo de doação, ajo como agi agora. Nunca isso me impôs situação constrangedora. Sinto-me como se pretendesse burlar a lei, sonegar o que realmente devo.’ Sem alterar sua postura de menosprezo, ele quis se mostrar didático por meio de uma comparação: ‘Isso, cidadão, é como avançar sinal vermelho; por não ser admoestado, repreendido, você vai mantendo a prática censurável; até que, um dia, aparece um guarda de trânsito e lhe aplica uma severa multa. O recomendável, o razoável é que se evite avançar o sinal, sempre.’

“Compreendi a lição. Juntei meus papeis, acomodando-os de volta no envelope pardo. Agradeci o atendimento e, quando já me preparava para ir embora, ele me indagou: ‘O senhor não quer que eu regularize agora a sua situação?’. A resposta veio num lampejo: “Não, senhor! Muito obrigado. Sempre que faço… besteira, faço questão de usar o meu próprio papel higiênico. Passe bem!’.

“Vejam bem, senhores! Com esse relato não questiono a atuação do Fisco. Não procedi como mandam as regras vigentes. A correção se fez devida. Agora, o que me causa perplexidade, o que vai muito além da minha capacidade de compreensão é a omissão – não quero acreditar em conivência – dos entes públicos de controle e fiscalização ante a prática – em todos os níveis da administração pública, em valores muito além do que poderia imaginar a nossa vã ingenuidade, no curso de tempo que já ultrapassa décadas –, a praxe dos conchavos, dos conluios, das fraudes, das negociatas, da velhacaria, do embuste, dos desvios, das trapaças, da roubalheira, da esbórnia, da orgia, em resumo, da malversação audaciosa, continuada e sem limites do dinheiro público.

“Minha dor maior, amigos, é perceber que visitei a malha fina do Fisco por causa de trezentos e poucos reais, em doação feita sem seguir as exigências burocráticas; enquanto os ladravazes engravatados – empresários e políticos –, não raras vezes com a intermediação de agentes públicos rapinantes, achacadores e, portanto, peculatários, aplicam golpes de toda ordem, envolvendo valores sempre na casa dos milhões, e o insaciável leão nada vê, nada ouve, de nada desconfia… não ruge, nem urge. Engole uma adiposa zebra e se engasga com um entanguido mosquito.

“Sinto-me obrigado a concordar com o ilustre professor universitário aposentado. AQUI O NEGÓCIO É DIFERENTE. E muito diferente.”

Após um momento de silêncio, o decano, antes de convidar os confrades ao brinde ao deus grego do vinho, com nova rodada de cerveja geladíssima, regada a tira-gosto saborosíssimo, pediu autorização para quebrar uma das regras de nossos encontros. Ante a aceitação tácita de todos, disse ele, em tom grave:

– Há uma frase cuja autoria é atribuída a Rui Barbosa, que se ajusta como uma luva a este crucial momento político, econômico e social por que passa a pródiga Nação brasileira. Eu a mantenho gravada no meu celular. Só um instante. Vou recuperá-la. Ei-la. Vou ler pra vocês: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” Isso é de uma atualidade inquestionável, senhores.

Silêncio. Meditação.

E, se lá onde imperam os poderosos, tudo tende a acabar em pizza, aqui, onde o que importa é a cidadania, a tendência é terminar em vinho, ou melhor, em cerveja. Deliciamo-nos em um brinde a Baco.

Depois disso, deu-se o prosseguimento normal dos “ordinários ofícios”.

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