Ao ser arremessado da Margarida, a certeza da passagem para o Além surgiu nas pupilas felinas de Nabuco. Ele e a porta da Rural, precipício abaixo.
Primeiro, um vão em queda livre. Nele, o pelo arrepiado e as garras afiadas a unharem o vazio da noite. Na mente do bichano, um redemoinho de lembranças e cobranças: “E os meus planos? Eu que os tinha em tão alta conta!”
No início, acorreram-lhe, numa sequência de imagens rápidas, os felinos já louvados (e decantados) na literatura: Julio Cortázar, com sua gatinha Flanelle; Balzac e sua gata inglesa; as reflexões do gato Murr, de E.T.A. Hoffmann, e sua paixão pela bichana Miesmies; o gato de rua chamado Bob, de James Bowen; os bichanos selvagens da África do Sul de Doris Lessing; o Rahul, de Lygia Fagundes Telles; sem deixar de mencionar os de Clarice Lispector. A todos e a todas, Nabuco queria superar. Na inteligência, na arte filosófica, no conhecimento, na sagacidade, na erudição e — por que, não? — na elegância e no protagonismo frente à “ridícula espécie humana”.
De repente, um baque em um galho de árvore desacordou Nabuco. “Existirá inferno e céu no reino dos gatos?” Nenhuma resposta, apenas e tão só o oco do nada.
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Um pequeno foco de luz. Nabuco se deu conta da presença de um chamado. Como se vindo de bem longe, quase inaudível. “Na… bu…co?!…”
Não sabia quem o chamava, muito menos se era de bom tom responder.
— Nabuco! Estique… a pata, gatinho! Coopere, vá!
Percebeu que estava dependurado na copa de uma árvore, a ouvir a minha voz:
— Mi…au, mi…
— Ele está vivo, este Nabuco é duro e forte, minha gente! — festejou Acácio, acompanhando minha missão de resgate, a dar palpites em tudo, mas, claro, a não correr o menor risco.
Eu me encontrava pendurado numa corda segurada por Uélsson. De cabeça para baixo, amarrado pelo pé direito, eu ia pedindo que Uélsson me desse corda. A lanterna na mão direita iluminava minha descida pelo precipício. Tal qual um filme que vira no cinema no início do ano.
Ia tudo bem, confesso. Até que, com aquelas palavras de Acácio, todos aplaudiram o feito. Inclusive o Uélsson. A corda se soltou, e lá fui eu de precipício abaixo.
— Ai…ui… mi… au… sss.. ai… ah…
O meu grito ecoou pela serra inteira. Dizem que nas localidades no entorno atribuíram tão escandaloso e sinistro berro ao estupro da filha do Belzebu.
Olhe, caro leitor, você não imagina o que é um mergulho desses! É indescritível. Caí feito uma bala, passando um palmo de gato de onde Nabuco se encontrava.
Confesso que até pensei em me atracar com o bendito. “Pelo menos morro com uma companhia!”
Nabuco, ao perceber a minha intenção, recobrou a vida e saltou, afastando-se para um galho mais distante.
Se eu morri?! Claro que não, ignorante leitor, não estou aqui a narrar esta desventura?!
Você me diz que existem memórias póstumas?! Não, não minhas! Não tenho a menor disposição para escrever nada depois de morto.
Pois muito bem, voltemos ao meu mergulho no precipício. Tentava me segurar em tudo. No vento, nos galhos, nas folhas, nos espinhos… tudo me passava de roldão. De repente, um tranco. Salvo pela corda do Uélsson. Na descida, ela se enganchara na densa mataria, e vi-me suspenso. De ponta-cabeça.
Lá embaixo, meu Deus, uma fossa de tirar o fôlego. Corajoso, resolvi orar, de olhos fechados.
De longe, de muito longe, o chamado de Uélsson:
— Clau…der…?
Reuni forças e gritei:
— Salvem-me! Estou aqui.
A voz me saía fraca, pela posição e por ser direcionada para o fundo do fosso. Sem falar no cricrilar dos grilos, no bulício da serra.
De repente, num hiato de silêncio, captei a fala de Acácio:
— Salvemos Nabuco, minha gente. Quanto ao Clauder Arcanjo, este já era!
Aquilo me deu forças inimagináveis para urrar:
— Socorro! Estou aqui. Me salvem! Acácio, seu fela da puta, eu te pego!
Notava que a corda ia cedendo, ameaçando soltar-se a qualquer momento.
Lembrei-me de minha mãe. “Sempre se pegue com Nossa Senhora. Ela é a protetora das causas impossíveis”.
Rezei uma ave-maria, a prometer, contrito, mundos e fundos à Mãe do Senhor.
Com pouco, uma orientação do alto:
— Jogaremos uma outra. Segure nela. Se possível, amarre na cintura! — orientava-me Uélsson. — Quando estiver com ela firme, puxarei você com a Rural. Vá se protegendo, é o único jeito de tirarmos você daí. Entendeu, Clauder? — continuou.
E assim rezei para que eu, ao invés do Nabuco, tivesse sete vidas. Umas duas, com certeza, caso conseguisse ser puxado, as perderia nesse arraste pela Margarida precipício acima.
Com a ponta da nova corda, amarrei-a o mais firme possível na cintura, passando também entre as pernas, a fim de que ela não se soltasse, caso eu perdesse os sentidos no resgate.
Antes de dizer pronto, a lembrança de que há coisas piores do que uma pandemia na vida. Uma lágrima escorreu pela minha face; verifiquei o nó, pensei na minha Biscuí e nos meninos e, então, bradei, a plenos pulmões:
— Estou pronto! Podem puxar!
A Margarida roncou com sua potência de Willys aposentada e começou a operação de resgate. Os galhos passaram arranhando meus bagos e riscando todo o corpo, os espinhos rasgavam minha roupa. De olhos fechados, a orar, com as mãos a proteger, ora os olhos, ora os possuídos. Pouco depois, um bicho subiu nas minhas costas, a enfiar suas garras afiadas nos meus ombros. Era Nabuco.
Uma espécie de forquilha fora instalada na boca do precipício, guiando a corda de forma a mantê-la mais afastada. Ideia do Carlos Meireles. Com tal invenção, subi livre, evitando assim que batesse nas rochas durante o içamento.
Chegamos ao alto. Vivos, mas em petição de miséria. O gato Nabuco, com uma vida a menos. Eu, aos frangalhos. E se tenho sete vidas, com certeza lá se foi uma.
Desfiz os nós da corda da cintura, bem como da do pé.
Quando tudo parecia calmo, o desespero de Carlos Meireles:
— A Margarida!…
A Rural, após o maravilhoso resgate, descia a Serra de Itapajé, a não dar a mínima para os comandos de freio do Uélsson.
— Socorro! Depressa, socorro!… Freiem a Margarida! — clamava Uélsson, serra abaixo.
— Será que só chegaremos a Licânia depois da pandemia?! — questionou-me Carlos Meireles.
— Esta odisseia parece que não tem fim!