Meireles da Meira, da Beira – Iris Cavalcante

Foram 18 anos e dois filhos. Conheço cada esquina do bairro. Acompanhei a verticalização ao longo dos anos. Simpáticas fachadas se transformaram em grandes caixas de vidro que deixam escapar seus interiores. O externo e o interno se fundem na beleza urbana. Da minha janela, assisti ao ir-e-vir de pessoas. Personagens de uma crônica diária foram envelhecendo e comprometendo a curvatura, ambulâncias chegando para a última viagem.

Meireles, o bairro. Da Meira, da beira. À beira mar ou na foz do Riacho Maceió, fomos aldeia um dia, “aldeia, aldeota, estou batendo na porta pra lhe aperriar…” Pescadores desafiam o mar em pequenas jangadas. Içam velas. O homem magro com o torso nu alcança a grandeza feita de ondas.

Há o mercado, o clube, a igreja, a praça. Padarias abriram e fecharam, supermercados, academias. Circula o carro da fruta. Cabeto esteve ao meu lado, esbanjando elegância, numa casa de um farto jardim sem muros. Criações de vanguarda expostas nas galerias.

Ruas mudaram o sentido. Nas calçadas, pessoas se dão bons-dias, ecoam os ruídos da construção. Uma conhecida faz o mesmo percurso há anos, com sua Lulu da Pomerânia, e os bem-te-vis continuam cantando e nos fazendo acreditar em poesia urbana.

A mulher feita de sonhos adquiriu marcas da idade, perdeu sonhos, trocou por outros. Poemas e souvenires habitaram a casa, os livros foram chegando, outros sendo escritos. Autores fizeram morada nos textos. Algumas amizades que frequentavam a casa não eram amizades da dona da casa e se foram. Particularidades da vida privada. Houve perdas e ganhos, surtos e absurdos múltiplos.

Não moro mais no antigo apartamento da Monsenhor Bruno, mas quando se apagam as luzes, ele chora por mim, escutam-se meus passos, abro portas, vejo fotografias, redefino saudades. Faço-me presente na ausência. Mas o sol é o mesmo e o mar que avistei da janela, também. Ali singram os ventos litorâneos.

Assisti à vida transcorrer pelo olhar dos filhos, mas um dia, os meninos tornaram-se homens, advogado e arquiteto do futuro. As namoradas foram chegando e saindo e chegando novamente. Trancaram-se nos quartos. A roda da vida em contínua revolução. Foi a partir do meu olhar que a vida seguiu. Um recomeço, uma nova narrativa, um novo bairro.
Não devo viver 100 anos. Não vou perder tempo com boletos ou bens materiais que perdi, isso não importa mais. Só não me tirem os livros, nem o riso. Vivo a vida com a leveza e a simplicidade possíveis, e com a brevidade que há de ser. Às vezes meio à toa, sem saber o próximo capítulo ou quanto gasto por mês. Seja no Meireles, Papicu, Chiado ou Brooklyn, o tecido do tempo se desfaz, um segundo e já é passado.

São 2h45 de uma madrugada. A cidade não dorme, nem eu. Ela atravessa minhas veias abertas, eu me estendo além de suas ruas e becos e histórias e personagens, numa ressonância que nos atinge em nossos infinitos.

Estou nas alturas de um décimo sexto andar. Da janela de hoje, avisto a cidade que escolhi e que me acolheu, quando eu era apenas uma menina vinda do interior, cheia de sonhos. Aqui, eu fiz de mim quem sou. Estamos no controle: a mulher e a cidade.

Sobre o autor:

Compartilhe este artigo:

Meireles da Meira, da Beira – Iris Cavalcante