Eram tardes de pacotes e mais pacotes de xilito ou biscoito Passatempo, garrafinhas de guaraná Frevo bem gelado (quem ousa dizer que lembra?), muitos palavrões em voz não muito alta – pois eu era só uma criança com uma frustração temporária e uma madrinha vigilante com a chinela na mão – e talvez uns dois ou três calos nos dedos. Além disso, os olhos avermelhados, uma concentração que eu não tinha nem na aula mais difícil de Matemática e ainda uma conta de luz mais alta no final do mês denunciavam que já era sem volta aquele passatempo-que-não-era-biscoito pelo qual todo moleque basicamente se vicia ao descobrir: o videogame.
Me arrisco a dizer que minha emoção ao ganhar o primeiro videogame só viria a ser comparável anos depois quando tive meu primeiro carro. A sensação de liberdade em ambas situações é bem parecida. A diferença é que o carro traz junto algumas dívidas eternas e bem chatas como IPVA, parcela do financiamento e um monte de manutenção sazonal. Mas o videogame dava a direção e o combustível para uma criança poder acelerar com tudo e se deixar perder nas curvas e ladeiras da imaginação. Era uma habilitação para toda a vida, sem exigir renovação da carteira nem cobrar impostos abusivos, permitindo um incorporar de narrativas e aventuras onde você poderia ser quem quiser: desde um porco-espinho azul que derrota robôs e corre velozmente atrás de aneis dourados flutuantes até o comandante de uma nave espacial que detona hordas de alienígenas pela galáxia afora.
E tão simbólico e poderoso quanto poder encarnar qualquer heroi ou personagem dos jogos era o famoso “meia-lua pra frente + A”, o comando básico geralmente utilizado para disparar um movimento especial nos jogos de luta como Street Fighter (“hadooouken!”) ou Mortal Kombat. Era manjado, repetido à exaustão e às custas de vários calos nos dedos por conta da fricção nos botões de um joystick não tão confortável naquela época – quem nunca enrolou o dedão na camisa pra poder controlar melhor os botões duros e ásperos, onde a camisa também ajudava a não passar suor e evitar derrapar os dedos no controle? Por vezes era também um recurso covarde e sinônimo de falta de fair play: quem nunca foi taxado de “apelão” ao jogar com algum amigo que não tinha “as mânhas” do jogo? Ora, mas e quem ligava pra habilidade naquele tempo, quando tudo o que importava era vencer o “chefão” ao final de cada fase? Olho por olho, dente por dente… dedos por calos.
Desde meu primeiro console (um clássico “Nintendinho” que rodava cartuchos de 8 e 16 bits), tinha certeza de que aquela seria uma das minhas diversões favoritas para o resto da vida. E acompanhar a evolução dos videogames foi também uma experiência muito única, que talvez as próximas gerações sequer possam viver. Imagine o quão mais realistas os jogos podem ser do que já são hoje? Qual é o limite hoje em dia? Felizmente sou do tempo dos jogos em 2D, de “plataforma”, dos joysticks de apenas 3 botões. Peguei a era de títulos importantes como Sonic, Super Mario Bros., Metroid, Earthworm Jim, Bomberman, Altered Beast, Golden Axe, Road Rash, praticamente todos os MegaMan, Chrono Trigger (belíssimo RPG que jogo até hoje), Desert Strike, sem contar o famoso “Briga de Rua”, que na verdade se chamava Streets Of Rage e tantos outros. Minha geração viu nascer ainda a tímida alvorada dos jogos em 3D quando chegaram os primeiros consoles como Sega Saturn e pouco tempo depois o Playstation 1. Neste tempo, uma de minhas musas da adolescência não era de carne e osso, mas sim uma boneca em 3D toscamente moldada com lábios carnudos chamada Lara Croft, no clássico e revolucionário Tomb Raider.
Também tive a felicidade de frequentar o fliperama do Iguatemi quando ainda não tinha nem altura pra alcançar direito os comandos do jogo e ver a tela inclinada na máquina. Do tempo em que ainda se comprava ficha pra jogar, com direito na sequência a um lanche gostoso no Mister Pizza ou no Big Burger. Vivi com muita felicidade a época das saudosas locadoras. Nossa, me lembro o cheiro desses lugares. E até hoje, posso arriscar dizer que lembro exatamente o endereço de onde ficavam todas as que frequentei. E como era boa aquela sensação de riqueza ao pronunciar em alto e bom som pro dono daquele lugar: “bota mais meia hora!” ou “manda mais 50 centárru nessa fita!”. Ou então o prazer de se sentir desafiado quando um coleguinha chegava e dizia “bora campeonato?”.
Mas o caráter de compartilhar e viver os jogos foi mudando, certamente, com o tempo, e talvez muito mais rápido do que qualquer um ousava imaginar. Com o advento da internet, as amadas locadoras – santuários eletrônicos para quem ia alugar ou jogar nas cabines ali mesmo – foram minguando e sendo vencidas por um mercado que já não sustentava seu modelo, e lembro como fiquei triste ao passar nos endereços e ver tudo vazio com uma placa de “aluga-se”, justamente onde outrora me divertia e descobria um mundo todo de diversão ao meu dispor. Com a internet, esses hábitos, esses encontros, essas jornadas compartilhadas de tantas aventuras virtuais que criavam amizades e até disputas saudáveis da infância foram se dissipando: cada um agora tinha seu computador pessoal, sua conexão online na própria casa e mergulhava na onda dos jogos em rede. Confesso que essa nunca foi muito minha praia, pois não era nem bom jogador contra tantos outros online (diferente daquelas disputas a dois nas cabines ou no videogame em casa) e muito menos me acostumava com esse formato.
E talvez um último suspiro desses hábitos coletivos de sair pra jogar tenha sido por conta das famosas lan houses, grandes lojas com diversos computadores conectados em rede onde a turma ia jogar em grupo. Nessa época (já meados da década de 2000) rolavam os famosos “corujões”, onde o pessoal praticamente virava a noite jogando ali. Não gostava desse tipo de jogo também, pelos mesmos motivos explicitados acima. E, cá entre nós? Durante a noite, tanto quanto hoje, eu só queria mesmo era dormir!
Hoje em dia, o online e o mobile dominam boa parte não só do mercado, mas dos hábitos de jogo individual de outrora. Pelo menos pra mim, é algo que não substitui a sensação de pôr uma mídia física num videogame, pegar o controle e me deixar carregar pra dentro da TV. É outra pegada, é outra sensação. Mas gosto é gosto! Por outro lado, estamos numa feliz época onde a nostalgia voltou à moda. Muitos dos jogos que citei lá no comecinho e tantos outros do gênero plataforma/2D estão voltando. O serviço Steam, que funciona como uma Netflix dos jogos, também está fazendo um ótimo trabalho ao resgatar e comercializar para download muitos desses títulos clássicos. E a própria indústria volta a investir tanto em remakes (novas versões, com remasterização e mais qualidade) quanto em relançamentos desses jogos, daquele jeitinho “pixelado” mesmo, que lembra o estilo daquele tempo. E mesmo que jogar através do computador ou do smartphone não traga a mesma experiência, pelo menos temos a oportunidade de relembrar os jogos e suas histórias que marcaram nossa boa infância. Uma época feliz para atingir uma fatia de mercado de quem era jogador contumaz da geração passada, onde temos o poder de escolha para consumir esses produtos numa assertiva tendência de consumo que a famosa guru do marketing Faith Popcorn batizou lá no começo do novo século de “Volta à Infância”.
Frequentar também as bancas de revistas, um bom hábito de quem amava jogos, quadrinhos e álbuns de figurinhas, era outra diversão. E até necessidade, visto que praticamente 100% dos jogos de videogame eram em inglês e naquele tempo era preciso frequentar um curso presencial caro pra poder entender algo além do verbo to be. As revistas, como a famosa Ação Games, eram o nosso Google da época: nela se tinha acesso aos “detonados” (que eram guias passo-a-passo pra finalizar um jogo), às dicas e truques pra trapacear ou liberar alguma função escondida nos jogos, a matérias sobre o mercado dos games, novidades e o que iria ser lançado. Engraçado pensar também que essas publicações só não eram mais disputadas que as revistas de mulher pelada que a gente, naquela idade, já insistia em querer ver ao menos só a capa nas prateleiras da banca. Era o proibido disputando com o desejado pelos nossos instintos adolescentes – neste caso, as de videogame venciam por uma estrita margem, mas também porque suas tentadoras concorrentes não podiam ser vendidas pra menores mesmo.
São tantas memórias boas, tantos hábitos gostosos de quem viveu uma boa era dos consoles caseiros que não tem como não querer resgatar sempre um pouco disso hoje em dia. Já baixei muito joguinho legal no Steam e vez em quando, pra desopilar, me pego novamente tentando emular aqueles tempos onde tudo era diversão e minha maior missão da semana era saber como passar de determinada fase. Lembra daquele cena de infância lá no começo? Pois é. Do xilito e do guaraná Frevo, enjoei – e na verdade acho que ele nem é mais fabricado. O Passatempo, por sua vez, fez jus ao nome e passou no teste do tempo: continua meu biscoito favorito até hoje nas raras vezes que compro na feira do mês (que minha nutricionista ou minha personal jamais leiam esta crônica!). Aliás, por falar em saúde, esse hábito de comer porcarias de infância também deixou seu legado: uma insistente pancinha que hoje peno pra perder depois dos 30 (oh, metabolismo desgraçado…). Já os palavrões, não saem da boca: uso todo dia como boa terapia gratuita nos momentos de descarga mental perante as raivas da vida adulta.
Mas o videogame, sua diversão, emoção e as memórias de tanta coisa boa que minha geração pôde viver, seja nas saudosas locadoras ou jogando em casa com os amiguinhos…Tudo isso, nenhum chefão jamais vai poder derrotar.
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