Mar de lama

Um mês ausente deste espaço, para gozo de férias, volto às lides jornalísticas numa semana em que o próprio jornalismo vem sendo objeto de uma campanha difamatória que, se faz parte do dia-a-dia do país desde janeiro de 2019, por força do mais abominável governo de que se tem notícia no país, parece não ter limites em termos de baixeza e indignidade.

Não bastasse, no entanto, a onda de ataques à imprensa que se espalha de modo sistemático pelos quatro cantos por Jair Bolsonaro e sua gangue, como é típico do fascismo, agora vem à tona um fato individualizado em tudo repulsivo e nauseabundo atingindo a pessoa de uma das mais premiadas jornalistas da atualidade.

O motivo, sabe-se, remonta a 2018, quando Patrícia Campos Mello dedicou-se a revelar os ilícitos difundidos pelo WhatsApp nas eleições daquele ano em favor do então candidato de extrema-direita e atual presidente Jair Bolsonaro. Desde então, a jornalista da Folha de S. Paulo vem sendo alvo de ataques os mais enojantes e inaceitáveis, a exemplo do que ocorreu na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito durante depoimento de um desqualificado de nome Hans River do Nascimento.

Perante deputados e senadores, Nascimento acusou Patrícia Mello de insinuar-se sexualmente a fim de obter dele declarações que prejudicassem a campanha de Jair Bolsonaro. O fato, já por si ultrajante, atingiu dimensões assustadoras quando o deputado federal Eduardo Bolsonaro usou suas redes sociais para tentar legitimar as palavras de Hans River do Nascimento.

O que se vê, para além de caracterizar uma prática condenável de misoginia, recorrente na trajetória da família Bolsonaro (“Eu não a estupro porque você não merece”, foi como se dirigiu certa vez o então deputado Jair Bolsonaro à parlamentar Maria do Rosário), é uma sistemática tentativa de intimidar as mulheres que se insurjam contra o empoderado clã do Rio de Janeiro.

O festival de baixeza e leviandade, todavia, esconde uma questão não menos relevante: as declarações de Hans River do Nascimento, ocorridas na terça-feira 11, e, ato-contínuo, exploradas à exaustão por Eduardo, se seguem ao assassinato não esclarecido do miliciano Adriano da Nóbrega, no domingo 9, como a tentar desviar a atenção do que parece ter sido uma explícita queima de arquivo encomendada por Bolsonaro e seus filhos. Adriano, sabe-se, era pessoa diretamente envolvida com Flávio Bolsonaro e as recorrentes práticas de “rachadinhas” no gabinete do então deputado estadual fluminense.

Ao tirar o foco do assassinato do miliciano tantas vezes homenageado pela família Bolsonaro, e amigo íntimo do atual presidente, não é sem razão que se pode vislumbrar a existência de motivações ainda mais aterradoras, o assassinato da vereadora Marielle Franco, por exemplo. De escândalo a escândalo, de torpeza a torpeza, de crime a crime, o Brasil assiste impotente ao que já configura a morte do que é essencial num Estado democrático de Direito: o respeito aos valores fundamentais da cidadania, da integridade física e moral dos homens e mulheres e o pleno exercício das liberdades individuais.

Nunca, em tempo algum, foi tão sem medidas o mar de lama que assola o país. Até quando?

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica