Escrevi várias vezes nesta minha coluna sobre o prazer que tenho em ler os chamados “clássicos” da literatura. Não, portanto, o último romance, não aquele romance sobre o qual “todos” estão falando (na medida em que ainda estamos falando de literatura e não apenas do último livro que virou séries de televisão, da novidade, da estreia), não de histórias ambientadas em nosso tempo e que nos convidam a fáceis identificações. Bem, alguém pode me perguntar: – então você não lê as novidades? Claro, às vezes eu também posso ler estas histórias. Por que não? Ora, sem falar nos gigantes de nossa literatura pedidos na ficha escolar e sem mencionar tudo o que li depois, nos anos noventa, uma de minhas diversões favoritas era a coleção de romances de banca “Sabrina”, sucesso do final de setenta e toda a década de oitenta. E conhecidos por mim, ali, na adolescência dos idos 90, quando herdei de uma prima “rica” a coleção “Julia” “Bianca” e “Sabrina”, e foi a esta última a que na época me apeguei. Consumia os romances de Sabrina e os conflitos açucarados das histórias de Sabrina me consumiam. Mas, em geral, prefiro este tipo estranho de literatura que consiste em obras publicadas décadas, séculos, às vezes milênios atrás. O seu contexto, o cenário, o tipo de personagens, os raciocínios, estão muitas vezes bem distantes de nosso tipo de vida atual. Além disso, escolher um “clássico” aparentemente não constitui nenhuma originalidade, nenhuma escolha pessoal, e raramente desperta curiosidade no outro. “O que você está lendo neste momento?” “A Ilíada“. “Que chato”, o outro vai pensar. Ou, “Pelo seu aniversário, estou lhe dando a nova tradução de ‘Guerra e Paz‘”. “Muito obrigada! (Como ela teve essa ideia? Por que pensou nisso?)”.
O prazer singular dos clássicos tem muito a ver com a universalidade da experiência humana. Nos permite ampliar nossa esfera de vida, sentir um parentesco com pessoas que viveram em outra época, ou no outro extremo do mundo. Este tipo estranho nos permite compreender melhor nossas vidas, indo além do particularismo, distinguindo entre o que muda no homem e o que se encontra em todos os lugares e tempos. Relembrando aqui, já falei sobre isso em textos anteriores.
Como decidir o que é um “clássico”? Como escolher o que ler? Há um chamado “cânone”: a lista de livros realmente importantes, os livros que se “deveria ter lido” ou “os 100, os 200, os cinquenta livros para ler antes de qualquer coisa”, (embora eu não conheça ninguém que tenha lido o “cânone” por inteiro). Ainda mais porque o cânone não é imutável. Varia de tempos em tempos, de país para país. Hoje, a própria legitimidade de um cânone, ou pelo menos dos cânones mais “clássicos”, digamos assim, é contestada com frequência. A eles é atribuído um ar poeirento e acadêmico, parecem autoritários, querem impor uma visão do mundo, contêm quase sempre somente obras de homens brancos. A pergunta que surge é: quem estabelece um cânone?
De um modo geral, eu não posso lidar com esta questão. Atualmente o debate é quase sempre inflamado, acalorado, ou outro sinônimo que melhor se encaixe. Gostaria de mencionar aqui, apenas e somente, com base em minha experiência pessoal, três cânones diferentes em termos de seus autores, mas não são diferentes em termos de conteúdo.
“O Cânone Ocidental. Os grandes livros e os escritores essenciais de todos os tempos”, (1994, tradução portuguesa, em 2011, por Temas & Debates/ Círculo de Leitores) de Harold Bloom, é uma obra erudita e influente. Corresponde ainda aos detratores da ideia do cânon criticam: uma obra escrita com a autoridade de extraordinário acadêmico e que apoia uma concepção quase “metafísica” dos “valores eternos” da literatura que se propõe à defesa contra ataques dos críticos marxistas, semióticos, desconstrucionistas, feministas etc. Portanto, uma abordagem definitivamente conservadora aos olhos de muitos de nossos contemporâneos. Um pouco desequilibrado em direção à “beleza eterna”.
“Por que Ler os clássicos“, do romancista e ensaísta italiano Ítalo Calvino é uma coleção de introduções, portanto, um livro menos sistemático. Aqui, a escolha é feita por um autor que se tornaria ele mesmo um clássico moderno, e não apenas na Itália. Mais uma vez lembrando, já mencionei isto em outro texto.
O “Revisitar os clássicos” de Kenneth Rexroth, publicado em 1969, em inglês, como uma coleção de sessenta pequenos ensaios sobre sessenta clássicos que tinham aparecido em anos anteriores na revista norte-americana Saturday review, acaba de ser publicado em português pelos editores da Antígona, esta, por sinal, vale ressaltar, muito contribui para enriquecer a cena cultural lusófona, sem conceder à rentabilidade mais do que o mínimo necessário.
Rexroth, que nasceu em 1905 e morreu em 1982, realmente não tinha nada do intimidante pontífice literário ou acadêmico. Foi um autodidata e praticou diferentes ofícios quando jovem -, de cozinheiro a trabalhador agrícola, de funcionário em um clube de jazz a repórter. Grande parte de sua vida passou em São Francisco, em meio a boêmios anarquistas e pacifistas, muito antes disso se tornar moda. Foi um dos protagonistas da “Renascença de São Francisco” nos anos 50, o início da famosa “Beat Generation“, além de ser um grande tradutor de vários idiomas e um importante poeta, que tinha por hábito recitar as próprias composições nas ruas. Com um notável interesse pelo budismo, a poesia chinesa e japonesa e pela poesia erótica-mística. Quando jovem quis ser monge, no entanto, tornou-se um ativista libertário. Rexroth deve ter sido uma pessoa interessante, assim o imagino. Eu teria adorado conhecê-lo, certamente! Só para lembrar outra figura central da Geração Beat em São Francisco, o poeta Lawrence Ferlinghetti, que se não tivesse morrido no dia 22 de fevereiro de 2021, completaria 102 anos no último 24 de março.
Mas vamos em frente. O “cânone” de Rexroth é, entretanto, do tipo mais clássico, com mais alguns textos não ocidentais. Eu me pergunto como ele conseguiu ler todos esses trabalhos – várias vezes, como ele próprio afirma! Algumas coisas engraçadas, por exemplo, são os julgamentos pessoais: na Ilíada, ele vê o choque entre os troianos civilizados e os gregos, guerreiros rudes que ele chama de “Vikings“, e compara os deuses olímpicos a uma corte oriental. A Odisseia, segundo Rexroth, nasceu dos contos de fadas que os marinheiros contavam uns aos outros e das fantasias do marinheiro sobre o que ele faria se descobrisse que alguém estava cortejando sua esposa em sua ausência. Já em “O Vermelho e o Negro” ele reconhece acima de tudo o aspecto cômico: Julien quer ser Napoleão, porém seus fracassos tragicômicos dizem a verdade sobre o estadista e líder militar francês. O cânone de Rexroth é ortodoxo, mas seus julgamentos não. Assim, ele contribui indiretamente para os debates de hoje: em vez de “purgar o cânone” e expulsar os grandes em favor da reavaliação dos autores mais obscuros, Rexroth retorna aos grandes, reconhece seu valor literário, mas os trata com fa-mi-li-a-ri-da-de.
- S. Há também uma continuação “Mais clássicos revisitados“, ainda sem tradução portuguesa e eu ainda não o li.
- P. S. Aqui o leitor curioso pode saber mais (em inglês)