GUARDO BEM NA MEMÓRIA a manifestação de espanto de um grande amigo quando lhe disse que para mim Deus não era apenas pai, mas também mãe. Ele, como bom presbiteriano, declarou: “Era só o que faltava: Deus-Mãe!”.
Desde a juventude trago comigo a ideia de que as derivações antropomórficas ocidentais da crença numaDeidade a partir de qualidades de um pater masculino, centradas nas imagens de Deus como Senhor dos Exércitos, Todo-Poderoso, Soberano, Másculo,contribuem para reduzir a possibilidade da busca humana pela vivência e pela compreensão da divindade de forma mais ampla e profunda, influindo significativamente na natureza simbólica das relações sociais e institucionais pelas quais vivemos e construímos o mundo (o todo puro, na perspectiva latina) ou o cosmo (o todo belo, na perspectiva grega).
Em minha vivência familiar, a unidade presente na relaçãoentre minha mãe e meu pai levou-me a atribuir aos dois em suas pessoalidades individuais como em sua complementaridade matrimonial a compreensão da mesma importância de ambos em minha existência humana. Nunca me senti mais filho de uma ou do outro; nunca me senti mais amado por uma ou pelo outro. Eu sempre me senti filho dos dois, amado por ambos. Por meio dessa percepção de cada um e de sua relação matrimonial pude obter um aprendizado o qual o considero de suma importância em minha existência: que nós humanos somos capazes de amar.
Dizer humanidade significa para mim afirmar a capacidade e a possibilidade que temos todos nós, enquanto espécie humana, de amar os outros, consequentemente, de conviver junto com outros em coletividades. É porque um outro nos amou, nos falou e nos olhou que nós existimos enquanto sujeitos humanos. Sem a presença dos outros nós jamais poderíamos aceder à humanidade.
A partir desta constatação, gostaria de fazer duasbrevíssimas observações. Em primeiro lugar anotar, como lembra o filósofo e linguista búlgaro Tzevetan Todorov (1939-2017), que ao final de algumas semanas após o nascimento de um bebê, dá-se um acontecimento especificamente humano: a criança tenta captar o olhar da mãe, não só para que ela venha a alimentá-la ou reconfortá-la, mas porque esse fato fornece por si só um complemento indispensável: o olhar da mãe a confirma em sua existência. Também como assinala o teólogo irlandês Brendan Leahy (1960), é por meio do olhar e do sorriso da mãe que a criança é despertada para a autoconsciência de ser aceita e amada; pelo amor do “tu” humano, que é a mãe, a criança chega a sentir e saber que é amada, digna de amor e capaz de ir além de si mesma no amor. Despertada na consciência também de que não é a criadora desse “outro-mãe” que a ama, gradativamente, vai compreendendo que mãe e pai não são tudo, mas que existe um tu–transcendente para o qual se está orientado de modo misterioso.
Em segundo lugar, gostaria de chamar atenção para aquilo que o psicoterapeuta suíço, fundador da escola de psicologia analítica, Carl Jung (1875-1961), quando trata dos conceitos de Anima e Animus. Segundo Jung, todos nós carregamos hormônios do sexo oposto e neles existem características inerentes ao sexo oposto que não nos são conscientes. Anima seria a contraparte feminina da psique do homem, e Animus a contraparte masculina da psique da mulher. O Animus compreende, entre outras coisas, a força, a agilidade, a ação voltada para desenvolver planejamentos direcionando sua força para a realização de um algo; ainda faz parte do Animus comportar-se como o condutor-guia apontando para um sentido. Já a Anima representa, por exemplo, o sensorial biológico, a afetividade, o amor ligado à devoção espiritual e à doação materna, e num último estágio a sabedoria transcendente. Deve existir, portanto, para o bom equilíbrio humano a complementaridade entre Anima e Animus.
Por fim, quero evocar uma passagem do teólogo Joseph Ratzinger (1927), no livro-entrevista com Peter Seewald, intitulado “Deus e o mundo: ser cristão no novo milênio”. Ele explicou que, no termo hebraico rahamin, “que originalmente significa ‘seio materno’ revela-se o mistério do amor materno de Deus”. Ratzinger afirma que “o ventre materno é a expressão mais concreta da íntima relação entre duas existências e das atenções dadas àcriatura fraca e dependente que, em corpo e alma, é totalmente protegida no ventre da mãe. Essa linguagem figurada do corpo nos oferece uma compreensão do sentir de Deus pelos humanos, mais profunda do que permitiria qualquer linguagem conceitual”.
Como lembra Leonardo Boff, “todas as coisas estão interligadas como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. O que fere a Terra fere também os filhos e filhas da Terra. Não foram os humanos que teceram a trama da vida, mas eles são o fio da mesma.Tudo o que fizer à trama, a si mesmo fará”. Então, além de olhar para o Pai-Nosso que está no Céu, devemos olhar com a mesma atenção para a Mãe-Nossa que está na Terra. Afinal, a mater-ia é a mãe de todas as coisas, onde o espírito pousa.