“O barco, meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta o dia, o marco, meu coração
O porto, não
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso”
Caetano Veloso
Num cenário de vitória do Lula se pergunta: Lula, resolve?
Não, não resolve.
Atenua? Talvez atenue, porque pior do que o desastrado governo que aí está não pode ser. Mas tudo depende da intensificação da depressão econômica mundial em curso e da capacidade de barganha com o Centrão, que é quem governa politicamente o Brasil, e que está sempre a serviço do grande capital que é quem manda de fato.
O horizonte, sob os marcos do capital, é sombrio.
A melhora com Lula seria relativa. Afinal, e pelo menos, ele não é negacionista; haveria muita pressão interna dos movimentos sociais e sindicais (que ele sempre usou, mas tem limites de uso); e tem muita gente no PT (mesmo que iludida) com sensibilidade humanista capaz de pressioná-lo, ainda que ele seja, como social democrata que é, mais que político conciliador submisso, força auxiliar do capitalismo.
Mas será que o momento é apenas de evitarmos o mal maior em benefício de paliativos inconsistentes, e sem reflexões para o futuro imediato?
Não podemos perder de vista o que está na base dos sofrimentos atuais mundo afora: a conjunção de crise sanitária com crise estrutural de um sistema caduco.
A renitente crise sanitária do coronavírus, que se recicla sob variantes e nos ataca como um exército invisível que ressurge com contingentes inesperados, coloca à nu o capitalismo incapaz de sobreviver sem os braços da produção social produtora de valor; sem as barrigas do consumo desenfreado; e sem as mentes teleguiadas pelo mercado.
Pari passu, a crise ecológica causada pelo aquecimento global fruto da emissão de gases na atmosfera, que não pode ser resolvida nos marcos do capitalismo predador e, obviamente, sob o colaboracionismo capitalista socialdemocrata, tende a naufragar nas águas turvas do seu limite interno e externo da expansão capitalista que tudo necrosa.
Vivemos, hoje, a depressão causada pela ineficácia de um governo desastroso, e o governo que virá enfrentará, além dos nossos problemas internos ora agravados, a depressão cada vez mais grave do sistema capitalista mundial, e precisaríamos de armas fora da lógica do capital para superar os problemas que se anunciam.
Com os tradicionais métodos de combate do mal com as armas do mal, corremos céleres para o desencanto; para a perda de esperanças, ou seja, de voltarmos os braços e mentes à insanidade que tomou conta dos brasileiros em 2018 que agora estão a nos fazer pagar o pato verde-amarelo (se lembra dele na Avenida Paulista, em frente à Fiesp, o bunker do capitalismo?).
É definitivamente ineficaz o eterno pêndulo entre governos de direita e suas eternas cantilenas de eficiência administrativa, retomada do crescimento econômico, e de combate à corrupção (enquanto a praticam na base, oficialmente, pela extração de mais-valia do trabalho abstrato), de um lado, e do outro, a esquerda colaboracionista que quer um capitalismo humanizado, como se o diabo pudesse ser bonzinho.
Tudo tem ocorrido ciclicamente a cada decepção e apagão da memória eleitoral amnésica.
Já se ouve em muitos setores do capital a aceitação parcimoniosa e confiante de uma convivência com Lula, e não é demais nos lembrarmos da repetição da frase do Presidente dos Estados Unidos que dizia: “você é o cara”, com tapinhas nas costas do Lula e tapete vermelho (de todos eles) na Casa Branca.
Desconfio de quem recebe os elogios do Tio Sam, porque com eles não tem almoço grátis, como dizia o Milton Friedman.
E isto porque desconfio de quem apoia Mohammad bin Salman, o sanguinário ditador da Arábia Saudita, que manda matar jornalista indefeso na embaixada de seu país no exterior;
– porque desconfio de quem não paga juros de sua dívida pública e subvenciona bancos (como ocorreu no caso da crise do sub-prime) que cobram juros extorsivos da nossa;
– porque desconfio de quem exporta moeda sem lastro e a troca por nossa moeda menos insubsistente;
– porque desconfio de quem usa patentes tecnológicas para vender um pequeno comprimido por preço equivalente a vários sacos de soja;
– desconfio de quem se diz democrata e promove a militarização despótica da América latina;
– desconfio de quem afirma ser adepto do livre mercado mas cria barreiras alfandegárias para nossas matérias primas;
- desconfio de quem fala em justiça social e defende a remessa de lucros de empresas estadunidenses que aqui se instalam como forma de sobrevivência num mercado cujo balizamento da vitória mercadológica se define por baixos salários e subsídios fiscais governamentais;
– desconfio de quem fala permanentemente em paz, mas faz a guerra da Coréia;
– quem manda tropas para combater no Vietnã;
– que solta bombas à 10.000 pés de altura e mata iraquianos inocentes sob a justificativa infundada de existência de armas químicas e regime ditatorial de um Saddam Hussein que antes era seu aliado, mas deixou de sê-lo quando o ditador quis ser dono do petróleo em suas terras;
– que apoiou o fundamentalismo religioso do saudita Osama bin Laden quando isso lhe era conveniente, criando um monstro que viria a se voltar contra o seu criador no maior atentado da história aos Estados Unidos, o ataque às torres gêmeas ao World Trade Center, tão devastador quanto o ataque japonês à Pearl Harbor;
– que invade o longínquo Afeganistão por se sentir palmatória do mundo;
– que invade o Kuwait e inicia a guerra do golfo pérsico de olho no seu estoque petrolífero;
– de quem promove embargos econômicos ao Irã (ainda que se possa criticar o governo fundamentalista dos aiatolás) por não se submeter aos caprichos estadunidenses;
– desconfio de quem fala em ajuda humanitária e promove embargo econômico a uma pequena ilha caribenha que ousou expulsar do seu território o corrupto Fulgêncio Batista que era apoiado pelo Tio Sam sem questionamentos;
– desconfio de quem persegue os imigrantes latinos nas suas fronteiras prendendo-os, separando-os de suas crianças e as colocando em jaulas cercadas, e deportando os pobres indesejados (mas dá green card a quem possa depositar por lá um milhão de dólares, num conceito de cidadania excludente);
– desconfio de quem mandou matar Che Guevara preso e indefeso, antes que o mundo clamasse por sua vida revolucionária;
– desconfio, etc., etc., etc.
É por estas e por outras que já estou pensando no day after pós-Boçalnaro, o ignaro, que é um Presidente terminal, sem passado que o glorifique; com um presente que o define; e sem futuro (apenas consignado como o pior Presidente da história republicana).
Não devemos ter medo de um futuro que negue as categorias capitalistas (trabalho abstrato, dinheiro, mercadoria, mercado, Estado, política, partidos, etc.) que nos causam tantos infortúnios e que se tornaram obsoletas.
Devemos apenas combater o medo coletivo em andar para a frente, e dos retrocessos que a história tem demonstrado ocorrer quando da transição causada pela saturação de um modelo de relação social que se torna obsoleto, até a sua consolidação (vide o exemplo dos avanços e retrocessos imediatamente após a eclosão da revolução francesa).
Vivemos o ocaso e as dores do parto de um sistema capitalista que ora encerra um ciclo de nascimento, vida e morte, colocando nos nossos braços e mentes a tarefa inadiável de superá-lo.
A volta a um passado que foi ruim, mas menos bárbaro do que o presente, não deve ser a tônica dos nossos enfrentamentos, e devemos conscientizar a população da causa motora dos nossos problemas sociais e que somente podem ser resolvidos com a conjunção do uso tecnológico da ciência com um novo modo de produção social e uma nova ordem jurídico-constitucional.
2022 é um ano importante para o restante do século XXI, e o Brasil não pode embarcar em ilusões salvadoras dentro do que está estabelecido enganosamente como imutável e ontológico à nossa existência.
Devemos incorporar o espírito do navegador lusitano que marchava corajoso por mares nunca dantes navegados e com a esperança de encontrar um novo mundo (excluindo-se o sentido escravista colonizador de quem os financiava).
Navegar é preciso; viver não é preciso.
Dalton Rosado.
ALEXANDRE ARAGÃO
Grande Dalton!