LOUVADA SEJA A CIVILIZAÇÃO DA POBREZA.

Neste mês de maio, o movimento Igreja em Saída no Ceará quis animar sua liturgia a partir da memória de dois grandes movimentos. O martírio dos profetas de El Salvador, assassinados pelo exército daquele país em novembro de 1989 e pela esperança renovada no lançamento da Encíclica Laudato Si,  ocorrida em junho de 2015. Tendo como pano de fundo compreender qual seria o custo de se ousar outra civilização. Nossa reflexão visa fazer memória aos mártires de nossa época, que superaram o medo da morte e apresentaram  a esperança estabelecida pela potência do texto do Papa Francisco.  

Em tempo, sabemos que nossa civilização está pautada pela lógica do ter e do acumular; o possuir e o comprar viraram uma espécie de destaque social; a vida a crédito movida pelo consumo se tornou a maior expressão da mediação social, especialmente nas últimas três décadas  do Século XX. Esse processo resultou de vários movimentos iniciados cem anos antes, quando se abria a história do ciclo mais perverso que a humanidade escolheu trilhar: o capitalismo.

Nesse modelo baseado na produção e no consumo, a ética da prosperidade turvou as possibilidades da vida em comunidade, lugar onde a cooperação, e não a competiçãodeveria nos guiar. No século do automóvel, do carvão e do petróleo, mesmo diante de tantas riquezas produzidas, mesmo considerando tantos avanços tecnológicos e todas as possibilidades de um mundo mais digno e justo, a humanidade escolheu caminhar a passos largos para aumentar o fosso das desigualdades, aprofundar a exclusão social e rifar centenas de milhares de pessoas à humilhação da fome.  

Contudo, como bem disse Leonardo Boff: “é diante da maior crise que surgem as maiores possibilidades” e foi olhando para esse cenário que Ingnácio Ellacuría ousou propor a Civilização da Pobreza. A sua tese central consistia em apontar o povo oprimido como o elemento mais importante do sinal de Deus entre nós. Esta teologia não poderia prescindir dos pobres. Assim, a voz do padre jesuíta afetava seus colegas da Universidade Católica de São Salvador até encontrar o caminho das comunidades mais próximas, e em pouco tempo seu grito ecoava para se transformar em carisma social ao ganhar a voz do povo. Era a Civilização da Pobreza de que precisávamos para superar a primazia do lucro e a ganância do neoliberalismo alimentado pelos EUA e pelo Reino Unido, mas paradoxalmente apoiado na América Latina pelas bençãos  de sua santidade o Papa João Paulo II.

Pautados pela autenticidade inegociável do cristianismo, em novembro de 1989, Ellacuría e mais seis colegas (Ignacio Martín Baró, Segundo Montes, Amando López, Juan Ramón Moreno e Joaquín López, Elba Ramos e sua filha, Celina) encontraram seus martírios na ponta das armas do exército de seu país. Se uniam assim ao mesmo caminho de Oscar Romero. Porém, nem a força da arma, nem o veneno da bala, nem tampouco as armadilhas do capitalismo foram capazes de calar a voz dos profetas. Como diz José Vicente, “feito chuva em terra seca”, eles caíram para brotar vida nova. Renovaram a fé e a certeza de que um novo mundo não é apenas possível, mas necessário e urgente.  

Passados quase 30 anos da morte dos jesuítas, eis que as sementes começam a dar frutos. Aquilo que era noite se fez dia, o que era inverno se fez primavera, e em junho de 2015 o Papa Francisco, depois de escutar muitas vozes, apresentou ao mundo aquilo que hoje é conhecida como sendo a maior denúncia ao capitalismo moderno. Estávamos diante da Laudato Si, ou na melhor tradução para o português: Louvado Seja. Quis Francisco  o papa, retornar a Francisco o santo, para tomar emprestado o titulo do seu mais formoso poema e dar significado ao novo contexto de tudo aquilo que torna o mundo mais pobre. Agora, nas palavras de Francisco fica claro que o capitalismo não torna somente o homem e a mulher empobrecidos. Na verdade, essa realidade é a ponta do iceberg, porque antes da condição humana foi a própria ecologia que foi empobrecida pela lógica da ganância, do lucro fácil e imediato.

Agora humanos e natureza encontram-se sob a mesma condição de pobreza: são espoliados pelo capital selvagem. Tal loucura é muitas vezes legitimada por uma espécie de “lógica” da prosperidade que açoita a liberdade do pobre, mente e faz mentir quando promete o encontro com Deus. Não! Esse deus prometido pela “liberdade” do capitalismo não pode ser o Deus anunciado no rosto deJesus. Esse só pode ser o deus do dinheiro. Por quê? Porque Deus sendo Deus não se cala diante da fome, da violência e da morte. Deus por ser Deus toma para si a dor da natureza e do oprimido, se faz oprimido com eles,portanto, jamais poderia ser o deus do opressor.

Aqui está a potência da profecia de Ellacuría e da Laudato Si. É preciso estabelecer entre nós uma nova civilização. Esta civilização não pode, se quiser ser cristã, ser de quem acumula ou de quem concentra, mas a própria expressão de uma civilização da pobreza. Pobreza aqui entendida como sendo um tipo de comportamento que precisa carregar pouco; viver com pouco. Feito o peregrino que muito precisa caminhar, aquele(a) que topar viver a Civilização da Pobreza também precisa acumular pouco, somente o suficiente para chegar até a próxima missão. Quem vive com o necessário estabelece no seu horizonte a própria noção da justa medida.

Assim, a Civilização da Pobreza será construída em cada um e cada uma de nós que não apenas topar fazer uma igreja em saída, mas ser a própria igreja em saída. Como? Nos mais simples gestos de cuidado. Cuidado com sentido de amor e esperança. Cuidado com os pobres dos nossos tempos, como homens, mulheres em situação de desemprego, cultivar o afeto com os encarcerados(as),alimentar o amor com aqueles tomados pela dependência química, ou aqueles que foram assaltados(as) pelas mais recentes reformas políticas, cujo resultado lhes retiraramos direitos humanos mais básicos,  entregando-os aos leões do capital.

Nessa trincheira encontra-se a profecia de Ellacuría e do Papa Francisco. Trincheira esta em que somos convidados e convidadas a mergulhar e fazer morada. Deste modo é preciso dizer: Louvada seja a Civilização da Pobreza, lugar onde todos se fazem pobres e, ao se fazerem iguais, adotam novas formas de vida. Aqui o evangelho recupera o sentido, a igreja reescreve seu papel de mediação com o sagrado e o amor reorienta novamente o nosso caminho.  

Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.

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Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.

1 comentário

  1. Pé. Ermanno

    Os capitalistas exploram desde sempre a natureza e as pessoas e reduziram tudo a miséria. Primeiro quem não suportou a exploração foras as pessoas que foram jogadas na miséria. Agora também a natureza caiu na miséria. A natureza aguentou mais tempo porque tinha mais forças e mais recursos para se regenerar. Agora devemos ajudar pobres e natureza a se regenerar. Não se pode salvar só metade desta maravilhosa criação que Deus deixou. Ou TODOS e TUDO ou nada.