O debate foi provocado por Paulo Elpídio em texto postado neste Segunda Opinião em 27 de agosto. E foi respondido. E ampliado. Veja abaixo em sequência cronológica as ideias e autores.
PAULO ELPÍDIO
… Somos pais das mesmas traças. Dos cupins, dizia Pedro Paulo Montenegro tratar-se de um gênero de comedores, altamente especializado. Segundo ele, esses diabretes tinham acentuada preferência pelos melhores autores. Dos livros revelavam notória afeição pelas encadernações bem costuradas…
…Passaram em manada silenciosa por baixo de muitos autores e distintos imortais de muitas academias, por eles ignorados por imposição de um aguçado senso crítico e estético. O pior dos cupins é a sua indiferença pela mediocridade. O que pode ser celebrado, no entanto, como um gosto apurado e exigente para as suas escolhas.
A crítica literária, para Pedro Paulo, era uma atividade intelectual criada pelos cupins. Esses críticos severos devoravam, entretanto, as melhores páginas e ignoravam o resto…
OSVALDO ARAÚJO
…Desenvolvi um tipo de solidariedade com os autores que não vendem. Não é culpa deles que seus livros não vendam. Nem culpa há no mundo real da literatura…Depois de alguns dias, a gente se conforma com a dor da demanda zero, e a dor vai declinando. Daí pra se acostumar é rápido. No livro seguinte quase não dói. No terceiro, anestesia total.
… Mas, as dores literárias fazem roteiro parecido com as evoluções da libido, mudam de foco, de alvo, pedem circunstâncias. Não vender deixa de doer. O problema é a ausência completa de feedback. Nada, nem dando o livro, nem perguntando se “leu”, nem inquirindo se “teve tempo de folhear”… nada, o ponteiro nem se bole. Feedback zero é mais grave, pior que não vender. Como dói a indiferença!…
PEDRO GURJÃO
…Esse fenômeno de aridez não assola somente o mercado de livros: os demais bens culturais, frutos da arte e da criação, atravessam a mesma agrura desértica.
…As entidades que congregam editores e livreiros estão mobilizadas, em nível nacional, buscando modos de aquecer o mercado editorial, promovendo premiações, concursos e reunião de autores autônomos em coletâneas…
…Depois da advertente palavra do Pedro (Paulo Montenegro) e do Paulo (Elpídio de Menezes); e como sei que você não é dado a encadernações luxuosas, aconselho-o, Osvaldo, em caráter preventivo, a descupinizar sua estante antes que algum oportunista maniqueu da protozoária manada lidere e comande um ataque de voraz fagocitose.
JOSÉ AUGUSTO MOITA
…Dizia o inestimável poeta, ensaísta e político Manoel Raposo, último integrante de uma singular cepa de comunistas inquestionavelmente autênticos da nossa Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, que os livros possuem dois grandes, infalíveis e impiedosos inimigos: os cupins e as viúvas; os primeiros, devorando sem cerimônia exemplares raros ou vulgares, e as segundas, fazendo desaparecer indecorosamente bibliotecas inteiras, na mesma proporção, voracidade e velocidade de seus parceiros de extermínio….
…Todavia, não se trata de inverdade a assertiva que reza nada estar perdido, sempre haverá uma voz amiga a confortá-lo, caso não seja possível aliviá-lo de alguns compêndios. A mim a palavra confortante chegou na solidariedade de uma amizade recém-conquistada, explicando-me que se deve escrever sem grandes pretensões, apostando em respostas do além, qual náufrago que despretensiosamente lança ao mar garrafas contando suas desditas. No entanto, dileto e persistente escriba, paira no meu peito o medo de num futuro não muito próximo e promissor, mares desprovidos de esperança estejam tão congestionados do bonançoso artefato, que os prováveis leitores pensem de nós: nossos antepassados foram uns porcalhões, passaram a vida poluindo os oceanos!…
RENATA MOREIRA DA ROCHA
…James Joyce enviou a vários amigos cópia do manuscrito de “Ulisses” – seu livro mais famoso. Nenhum lhe retornou.
Segundo relato de Stephan Zweig, Nietsche gastou suas últimas economias publicando alguns pensamentos e deles enviando cópia a alguns amigos. Também não obteve resposta alguma.
Depois tornaram-se best sellers. Essa é também a sina de muitos artistas, somente reconhecidos e celebrizados post mortem.
Que esses dois exemplos sirvam não apenas como consolo, mas antes como obstáculo desafiador aos autores – iniciantes ou veteranos.
Afinal, a missão essencial do autor é criar e escrever livros. Empreender, imprimir, vender e lucrar com eles é problema do mercado editorial…
PEDRO GURJÃO
…Segundo o Prof. Paulo Elpídio, em outras palavras aqui caricatamente rearticuladas, quanto maior a qualidade literária intrínseca da obra; e/ou quanto mais luxuosa a sua encadernação; mais rápida e voraz será a fúria escavadora e deletéria dos ilustres e seletivos cupins. E como a maioria dos livros que coleciono foi adquirida na capital parisiense, a instigante Ilação do renomeado ex-Reitor da UFC me renova aseguinte indagação: cupim brasileiro sabe traduzir Francês?…
MÔNICA MOREIRA DA ROCHA
… Como leitora apaixonada, se meu tempo nesta vida não fosse limitado, jamais deixaria um livro “juntinho, arrumadinho e quietinho” na estante, como os de Osvaldo. Nenhuma obra ficaria ignorada.
Ao ler um livro sinto-me parceira do escritor. Meu papel é uma espécie de coautoria emocional. O autor escreve as palavras, mas eu, como leitora, acrescento uma dimensão única ao interpretá-las, sentir suas nuances e completá-las com minha própria perspectiva. A leitura é um processo colaborativo, no qual o verdadeiro significado de uma obra só se revela quando ela é lida e vivenciada. Ler vai além de absorver palavras — é um encontro profundo entre escritor e leitor. É nesse encontro que o livro se torna completo.
Mesmo que o escritor tenha apenas um único leitor, sua obra está viva. Esse dinamismo significa que ela não está finalizada, pois, a cada novo leitor, um novo encontro, uma nova interpretação e uma nova vivência reiniciam o ciclo…
… A vida sem anestesia, por mais que doa, é a única que realmente nos permite sentir os momentos doces, calmos e verdadeiramente vividos. E é isso que a leitura oferece — uma imersão completa, sem atalhos, que nos desperta e nos faz sentir a profundidade de cada instante.
CLAUDER ARCANJO
A primeira se aproximou da lombada em couro da Odisseia, de Homero, e resolveu argumentar:
— Se eu der fim a esta Odisseia, traça irmã, daremos cabo do sofrimento de Penélope?
A outra, mais experiente devido ao comer dos tomos, tirou a vista do exemplar de Eneida, de Virgílio, devolvendo:
— Se assim fosse, jovem traça, quando devorei no ano passado A divina comédia, de Dante, eu decretara o fim do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Mas, pelas orações que se pode ouvirdas almas aflitas no salão vizinho, grande parte da angústia dos seres humanos ainda se resume a para onde serão destinados após a última viagem.
Houve um silêncio de insetos naquele ambiente repleto de livros…
DALTON ROSADO
Sabe-se que os cupins, xilófagos que são, gostam preferencialmente de madeira, que é de onde extraem sua seiva nutricional, e os livros, impressos em papel advindo da celulose existente nas células das plantas, representam o alimento processado e de fácil deglutição por esses insetos isóperos.
Quanto mais velho o livro, mais processado ele está para servir de alimento, daí ficar constatada a preferência pelos clássicos que costumam ficar mais tempo nas prateleiras das bibliotecas por natural sobrevivência à decomposição amnésica das obras menos importantes que desaparecem e escasseiam mais cedo por falta de novas edições, tal como as músicas de ocasião e sem maior qualidade…
Computadores, celulares (sem celulose, uma lástima, dizem eles) robôs, televisões, dinheiro eletrônico cujas somas que se traduzem em números frios (sem cheque ou cédulas em papel) demonstrando a sua abstrata composição, caixa eletrônico, comunicação instantânea via satélite com possibilidade de se fazer uma moqueca baiana sem os antigos livros de receitas ou um simples coquetel molotov, emails substituindo as sentimentais cartas impressas que registravam para sempre em papel redigido de próprio punho a paixão dos enamorados, etc., etc., etc., tudo isso conspira contra o interesse desses insetos que dizem terem sobrevivido até mesmo ao meteoro que destruiu a vida vegetal e animal no Planeta há alguns milhões de anos… Mas que estão agora ameaçados pela imbatível era digital…
DORA DE PAULA
…Lembro que, ao final da minha primeira infância, meu pai adquiriu uma biblioteca, estantes e livros, num acordo de contrapartida com o Ministério da Educação e Cultura, visto que começara a montar o pequeno Educandário Maria Paula, um sonho de minha mãe, que já fazia um trabalho de alfabetizar as mulheres da comunidade de Catolé-Horizonte.
Nunca mais esqueci do momento em que abrimos as caixas e os livros apareceram. Aquilo foi uma espécie de miragem, iluminação. Abria os livros, cheirava, sentia a textura, o colorido e a beleza das encadernações…
Então, primeiro, a sensorialidade, a observação do objeto, para somente depois, estreitar uma amizade, um conhecimento afetivo. Mas tudo numa experiência de uma espécie de transe…
PAULO ELPÍDIO
… RETOMANDO ALGUMAS DIGRESSÕES ABERTAS PELO DR. PEDRO GURJAO
A sua intervenção nestes conflitos de térmitas está excelente. A leitura, incontornável neste torneio de reservas de erudição da qual retiro a compensação pelos meus aplicados esforços.
Na verdade, não acusei os cupins de atacarem preferencialmente os livros de rica encadernação.
Eles, os meus cupins, são intelectuais, por formação e índole; preferem os melhores textos e a prosa mais culta. Quem consome livros encadernados são alguns bibliófilos. José Míndlin e José Augusto Bezerra estão longe deste arquétipo. Os colecionadores que, aliás, os tenho na mais elevada consideração, embora por falta de capital não seja um deles, são criaturas presentes em momentos de maior enlevo dos meus caprichos de leitor.
Os bibliófilos são, por missão e capricho, restauradores, desde os copistas, de pé, horas a fio, nos “scriptorium”, defronte à papiros e incunábulos, a deslizar o traço firme da sua caligrafia ou na construção dos códices que sobreviveram ao seu engenho e arte, séculos afora.
Os cupins, como as viúvas, não discriminam gêneros literários ou autores. Nem têm preferências remidas. As térmitas, tanto quanto as viúvas, atacam os livros. Os cupins, comendo-os, as viúvas vendendo-os aos alfarrabistas, com o alívio
de poderem deles se desfazer. Não é a arquitetura desta escultura magnífica — o livro — que os encanta, nem os incomoda. É o volume que ocupa espaços e espalha-se pelos cômodos da casa, insinuando-se entre bens de valor, tão caros às famílias.
A cunhada de Proust, que o odiava por ser homosexual e viver entre livros, na intimidade dos conselhos de Mme de Thèbes, queimou a sua biblioteca, após a sua partida, em um auto do esquecimento, na mansão de Neuily e o que restou, espalhou pelos “bouquinistes” do Sena em exercício perfeito de “L’oubli du temps perdu”…
Retomo o fôlego para tornar, se assim me permitirem a indulgência e o despego dos meus interlocutores, com outros comentários, os quais cuidarei de vestir com maior compostura e conveniência, as minha vãs circunspecções.
OSVALDO ARAÚJO
…O livro ‘Aqueles que queimam livros ‘, de autoria de George Steiner, foi lançado em 2008, reeditado inúmeras vezes, inclusive em 2020 pela Editora Âyiné, com 92 páginas.
… George Steiner era um estudioso do Holocausto, uma das violências desproporcionais do nazismo alemão, que literalmente queimava livros. Como um dos maiores críticos literários do século XX, estudioso da história, ele mergulha também na análise da importância dos grandes livros…
“…Em 1821, na Alemanha, comentando uma onda de autos de fé, Heine observa: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas “.
“… Em uma Casa do Livro se esqueceu rapidamente que os livros não são um fato nem universal, nem inevitável. Que são inteiramente vulneráveis ao fim e à destruição. Que têm sua própria história, como todas as outras construções humanas, na qual começos implicam a possibilidade e a eventualidade de um encerramento…”
AIRTON UCHOA
Os livros são objetos
Nem sempre objetivos
No que dizem mas,
Ainda assim, objetos
Como bananas ainda
Que não comestíveis…
…Os livros não têm dentes
Se não lhes damos dentes
Nós que escrevemos livros
Ainda que imprudentemente…
… Os livros a gente pode
Amontoar sem ler ou
Queimar se somos ruins
… Os livros os livros os livros
Os amantes do saber
Muito gostam deles
E secretamente vibram
Quando em chamas
Arde — uma biblioteca
PEDRO GURJÃO
… Pois bem. De repente entra em cena Marcel Proust (1871-1922). E, perguntariam vocês: o que o célebre escritor francês tem a ver com os cupins ou às viúvas ?
E aqui requeiro um parêntesis para assinalar que, em se tratando de um exercício diletante de crítica literária, vou aos poucos introduzindo pequenos comentários e citações de outros autores, a quem convido para acompanhar meu ilustre (e bote ilustre nisso !) interlocutor.
Elpídio refere-se inicialmente a Marthe Dubois-Amiot (1870-1953), cunhada do escritor francês, casada com Robert Proust (1873-1935), médico urologista e ginecologista, irmão mais novo de Marcel). Ela foi a responsável pela famosa queima de cartas e manuscritos proustianos – perda inestimável para seus estudiosos e colecionadores.
Motivo do ódio de Marthe, “o personagem mais estarrecedor” dessa destruição: Marcel Proust era homossexual e vivia entre livros, “na intimidade dos conselhos de Mme. de Thèbes”
Uma resposta
Adoro os cupins roedores de livros. Eles são de uma inteligência descomunal. Se alimenta. Da literatura mais ruim. E nós apontam o caminho para o crescimento na nossa intuição de leitores. Eles destratam os clássicos. Tem receio de ser esmagados pelo Espírito dos escritores autênticos.