Espetáculo revive e problematiza o mito de Caim e Abel no embate político contemporâneo
Uma leitura mais atenta do Pentateuco, os cinco primeiros livros do Velho Testamento, pode fazer com que nos perguntemos se o que está em jogo é somente e primeiramente o reino dos céus, se não se trata também de delimitar quem é o povo escolhido de Deus — povo ao qual é destinada a própria posse do mundo, ainda que, na Bíblia (Êxodo), a terra prometida seja um lugar específico com fronteiras específicas (diga-se de passagem, disputadas até hoje numa série de conflitos sangrentos em que os mais pobres e mais fracos são paulatinamente massacrados).
A primeira família nuclear é feita dos expulsos do paraíso, como nós sabemos — pois nos é, desde que somos crianças, ensinado como um fato histórico —, ou seja, Adão e Eva, os povoadores da terra. Seus primeiros filhos homens são os protagonistas daquilo que, na tradição mosaica, que inclui o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, seria o primeiro crime da humanidade contra a humanidade: Caim — agricultor, cuja oferenda dehortaliças não é aceita por um Deus tão voluntarioso que bastante lembra nesse aspecto os deuses de várias tradições pagãs, que o cristianismo um dia demonizaria, ao passo que aceita de bom grado a oferenda sangrenta de Abel, pastor — enciumado e injuriado mata o seu irmão e dá origem a uma cena, salvo engano, sem réplica em todas as Escrituras: interpelado por Deus, Caim se torna o único personagem a lhe dar uma resposta desaforada — mesmo o diabo, por mais ardiloso e traiçoeiro, no Livro de Jó, na aposta que estabelece com Deus (mais uma vez um Deus tão caprichoso como só no paganismo imaginaríamos encontrar) apenas para medir forças e tentar provar uma tese, pois bem, mesmo o diabo , eu ia dizendo, se mostra respeitoso diante de Deus.
(Um breve parêntesis necessário: se Caim, que não criava ovelhas, soubesse desde o início o que Deus desejava e pedisse a Abel ou lhe roubasse uma das ovelhas, o que diria Deus diante do sacrifício? Bem, a oferenda não seria originada do trabalho de Caim, pior, ainda que não houvesse os Dez Mandamentos — e Caim foi deserdado e degredados porque matou — sua oferenda também seria indigna e recusada. E Caim, enciumado…)
O crime gera o primeiro proscrito, o primeiro deserdado, segundo essa tradição. Logo, temos um Testamento propriamente dito, num sentido bem mais palpável, material, terrestre mesmo, do que imaginaríamos a princípio. Os herdeiros do deserdado, rezam os autoproclamados herdeiros da terra (que seguem a um Cristo de olhos azuis), a eles, aos herdeiros de Caim, cabe o eterno desterro, a eles, marcados, manchados, que sempre existirão, não cabe mais que aceitar o destino — são herdeiros do assassino do próprio irmão, e a terra que sorveu seu sangue desde então nunca saciou a sua cede. A marca de Caim, a marca escura, não se restringe só a ele. Mesmo que não houvesse propriamente leis, como dito acima, Caim é o primeiro criminoso, o primeiro bandido numa relação do homem com o homem (pois numa relação da humanidade com Deus os primeiros transgressões são os seus próprios pais). Um dito popular ainda muito usado diz que bandido bom é bandido morto, mas Deus, “piedoso”, declara que a morte não é o bastante, e marca Caim para que nada lhe aconteça — mais ou menos como marca Ismael, filho de Ágar, a escrava egípcia que gerou um filho a Abraão quando Sara, sua esposa, julgou que pela idade isso não lhe seria possível; mas Sara expulsa Ágar e seu filho Ismael (que, segundo Maomé, vai dar origem aos ismaelitas, segundo ele, o povo realmente escolhido) logo depois que Deus lhe opera um milagre e a torna fértil mesmo em idade avançada.
O espetáculo JURO DIZER A VERDADE parte dessa premissa: o que o Velho Testamento coloca como primeiro crime é a justificativa ancestral de uma série de atrocidades e vinganças cegas que passam por justiça sob o pretexto da vontade de Deus — que decretou a peregrinação de Caim sobre uma terra desolada. O que teriam a ver os nossos conflitos modernos, extensão moderna de conflitos tão antigos, com essa narrativa primeira? Tudo: embora isso nunca tenha sido postulado diretamente como justificativa — jurídica, pois em outras instâncias, e até bem recentemente, isso foi dito, sim, com todas as letras — para o domínio das nações ricas do velho mundo sobre as novas terras invadidas, a dominação do outro partiu do pressuposto da diferença do outro, ao ponto de se lhes atribuir uma exclusão do direto de cidadania humana: não seguiam ao Deus único, não conheciam Sua Palavra, sendo assim não eram dignos nem ao menos das terras que habitavam há milênios.
O tempo — muito tempo — passou depois da redação original em hebraico antigo desse mito fundador. O tempo — muito tempo — passou desde a época das grandes navegações. Uma Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão surge com a Revolução Francesa. Imaginamos: nunca mais entre nós seremos diferentes. Liberdade, igualdade e fraternidade serão de agora em diante o lema de uma humanidade resgatada, iluminada pelas luzes do conhecimento. A filosofia e as ciências podem praticamente adotar sob um novo tom o grande lema do Novo Testamento: Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.
Só não nos surpreende que, pelo contrário, a frase, banalizada, barateada, tenha se tornado o bordão preferido de certos charlatões bravateiros e mentirosos compulsivos e profissionais.
Explicações outras, embasadas pela “ciência”, perpetraram a alteridade do outro e a normatividade dos eleitos. Montesquieu declara a inferioridade dos povos originários que nascem em regiões tropicais e na Ásia, como quem quer dizer: ora, os povos dos climas temperados foram os que souberam lidar com uma terra adversa, logo, são também os que melhor podem aproveitar terras mais férteis e propícias tão mal aproveitadas. Por que também essa faixa do planeta não devia lhes pertencer? Claro, uma opção civilizatória também surgiu do lado debaixo do Equador: um dia, diziam os eugenistas, os traços brancos superariam os traços negros e indígenas, o Brasil e o restante da América Latina se tornariam um ambiente tão branco como uma folha de papel e, ali, uma nova história poderia ser escrita. Não precisaríamos mais ter vergonha de nada e poderíamos, enfim, ser aceitos. Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal…
Não preciso explicar que a ideia não fazia o menor sentido, mas alimentava de forma satisfatória uma das mais medíocres e mesquinhas ilusões surgidas entre nós. Nina Rodrigues chegou mesmo a elogiar determinadas raças negras — as melhores eram, segundo ele, as que não tinham se misturado com os brancos.
O discurso eugenista, por razões óbvias, não vingou, mas foi constantemente substituído por explicações improvisadas de quem já nem se preocupava minimamente com a lógica ou com um retórica minimamente bem construída — o importante é que o outro permaneça outro, que os meus problemas tenham a causa sempre numa ameaça estrangeira, que eu sempre possa apontar um dedo autoritário no rosto do dessemelhante: foi ele, a quem o mundo não cabe, que tornou o mundo imperfeito. É certo que, se, como diz o livro, todos nós viemos do mesmo pai e da mesma mãe num mundo que teria pouco mais de seis mil anos — não pensemos nas consequências nefastas de uma consanguinidade tão radical dessa descendência —, todos nós seríamos necessariamente irmãos. Isso se um único indivíduo não tivesse traído o próprio sangue, se Caim não tivesse matado Abel.
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Renata Lemes e Tiago Fortes são tanto os personagens Renata e Tiago — no processo de montar a peça, o que dá mote a uma série de conflitos encadeados e rimas cênicas que dão impulso e vigor à cena, e naquilo que poderíamos chamar, comprando a ironia da proposta de “peça propriamente dita” — quanto Caim e Abel (quando não são os dois que são simultaneamente Caim, é predominantemente Renata Lemes que, ousadamente e competentemente, desempenha o papel do irmão assassino). Tiago Fortes, por sua vez, nos momentos em que se põe como Abel traz uma série de perguntas instigantes. Qual era a voz e o discurso da vítima que não se pronuncia? O que é ser o preferido de Deus no começo do mundo? Qual o peso de um crime tido como ancestral e que parece se perpetrar por toda a história?
A peça mistura a linguagem típica do teatro com elementos do audiovisual e muito dinamicamente dialoga com o público. O romance Caim, de José Saramago, é usado como inspiração para trechos pontuais. A peça também dialoga com discursos políticos e religiosos que vão desde a época que dá início à colonização até discursos políticos modernos. A pergunta constante é quem somos nós mesmos diante de Caim e Abel, a que linhagem nos achamos no direito de pertencer. Por que não deixamos um passado que nem sabemos como foi no passado? Por que não perdoamos? Por que não nos perdoamos a nós mesmos de uma culpa que nem entendemos direito e nem sabemos se tem uma base real, mas que sem parar nos endivida?
O que, depois de tudo, não importa o que tenha sido de fato o passado, nos torna uma única família humana?
Por que temos tanto medo de abraçar essa família?
Saí do espetáculo mexido por essas perguntas, mas com a certeza do que tinha visto:
Uma peça bonita, corajosa, necessária.
SERVIÇO:
FICHA TÉCNICA
Atuantes: Renata Lemes e Tiago Fortes
Direção: Hector Briones Dramaturgia: Cia. AutoriZZZada e Rafael Barbosa
Audiovisual: Gra Dias e Victor Augusto
Trilha sonora: Ayrton Pessoa (BOB)
Iluminação: Walter Façanha
Preparação Corporal: Alda Pessoa
Produção: Bruna Pessoa
Ass. De produção: Felipe Feros e Marjorie Martins
Figurino: Diego Landim
Costura: Lídia dos Anjos
Vestivel branco: Carol Outono
Máscaras: Diego Landim, Kazane e Fernando Otto
Adereços: Diego Landim e Kazane
Projeto gráfico: Diego Landim Erratica Design.
Agradecimentos: Juliana Rangel, Isac Bento, Renata Sampaio e Cia. Prisma de Artes.
TEATRO DRAGÃO DO MAR
09/11/2024 (20h) — 10/11/2024 (19h) — 11/12/2024 — 12/12/2024
Inteira: R$ 30,00
Meia: R$ 15,00