Inimigos comuns e invisíveis

Três anos atrás, em nosso artigo publicado em 27 de abril de 2017, *“Da globalização ao hiperindividualismo”*, discutíamos brevemente sobre duas tensões que os governos das democracias modernas precisariam enfrentar por se tratarem de processos de grande amplitude.

 

Por um lado a acelerada globalização econômica, com a ditadura financeira mundial processada de forma desregulada pelas mãos dos donos do livre fluxo dos capitais, implicando o surgimento de crises de liquidez globais, como ocorreu em 2008, associadas ao crescimento de uma cultura de massa que reforça os valores dogmáticos e modus operandi da ideologia ultraliberal. Por outro lado, a radicalização do individualismo, com a elevada dissolução dos vínculos solidários, por uma subdivisão ao infinito, no dizer de Tzvetan Todorov em sua obra “Os inimigos íntimos da democracia”, com as normas da sociedade cedendo cada vez mais às demandas criadas pela propaganda mundial consumista individualista, em sociedades divididas em classes econômicas nas quais o poder econômico é desigual.

 

Neste ambiente, as redes sociais apresentam-se como um lugar privilegiado para a observação do fenômeno de exposição egocentrista. Não importa o que aconteceu, mas sim o que eu penso sobre isso, a minha opinião individual é mais importante do que o fato real. Esta postura é observada quase todos os dias nas “timelines” das redes sociais. Com as emoções e as rasas opiniões se sobrepondo em relação à objetividade da realidade, abre-se espaço para manipulações da verdade pela produção volumosa de “fakes”, que colocam em xeque a qualidade da informação.

 

A chegada do vírus covid-19 traz consigo a possibilidade para um maior entendimento do tempo presente, pelo fato de ser um agente agressor invisível com poder de atingir a qualquer pessoa e em qualquer lugar, deixando, a princípio, a todos vulneráveis. Diante do desconhecido ameaçador universal, as opiniões e crendices pessoais perdem poder. É preciso recorrer a um conhecimento abalizado capaz de apresentar soluções reais para o enfrentamento do inimigo comum. Apesar de haver sido enxotada pelos grupos fundamentalistas religiosos, árduos defensores de teses criacionistas, e da extrema-direita política, para quem a mudança climática é “fake news” e uma visão solidária planetária é “comunismo”, a ciência apresenta-se neste contexto viral ameaçador como um conhecimento necessário a todos. Contudo, para que isso ocorra, a comunicação segura é uma ferramenta fundamental para transmitir confiança ao público receptor. Implica portanto uma mudança de comportamento.

 

Outro aspecto que o vírus covid-19 também vem denunciar é o ultra-egoísmo em movimento. Com a sua chegada provocou uma corrida de famílias inteiras aos supermercados para lotarem seus carrinhos de compra com quantidades desproporcionais de produtos como álcool em gel, papéis higiênicos, máscaras protetoras, além de alimentos, deixando vazias prateleiras inteiras de supermercados. Lojas de “delivery” tiveram de suspender temporariamente seus atendimentos por não terem mais estoque para entrega devido à enormidade de pedidos. Mas no outro lado da realidade, milhões de pessoas por todo Brasil sequer têm água potável em suas casas, nem emprego formal com as garantias dos direitos trabalhistas, submetidas a ocupações precárias legalizadas pela desregulamentação trabalhista promovida pela ideologia atualmente no poder, cujo representante máximo é o presidente Jair Messias. Ou seja, a covid-19 não atinge a população da mesma forma, em virtude da imensa desigualdade econômica e social vigente no Brasil desde a sua fundação escravocrata. Uns detêm renda suficiente e excedente para abarrotar com álcool em gel em seus armários caseiros; outros sequer têm salários fixos nem tampouco fornecimento de água perene em suas residências.

 

Acontece que numa democracia todos são iguais perante a lei e o Estado existe como instituição garantidora dos direitos de todos os membros da sociedade nacional, devendo principalmente preocupar-se em defender o direito dos mais fracos, com o futuro mais longínquo e com os valores imateriais. No contrato político – a Constituição – a soberania popular estabelece o conteúdo para que o Estado caucione a validade do que foi pactuado. Portanto, a lei deve traduzir e garantir a vontade do povo asseverando que uma sociedade não é a soma de indivíduos atomizados com suas vontades particulares impostas a todos os outros custe o que custar. Um grupamento que funcionasse regido somente pelo poder dos indivíduos seria uma encarnação perfeita da barbárie. Todos nós temos direitos anteriores provenientes do nosso pertencimento ao gênero humano, além de direitos e deveres de nosso pertencimento a uma sociedade. E o Estado deve garantir esses direitos.

 

Um dos princípios democráticos recomenda que todos os poderes sejam limitados; não só o do Estado, *mas também dos indivíduos, inclusive e principalmente daqueles que detém maior poder econômico*. Como lembra Todorov, “a liberdade que algumas galinhas têm de atacar uma raposa é uma piada, pois elas não têm a capacidade para isso. Ao contrário, a liberdade da raposa é perigosa porque além de mais forte, ela é predadora, mortal”. Nestes últimos cinco anos em nosso país houve um ataque direto à rede de proteção social: a perda de 11.442 médicos cubanos do Programa Mais Médicos que atendia a 65 milhões de brasileiros; uma massiva retirada de investimentos do SUS; o corte de centenas de milhares de famílias nordestinas do Programa Bolsa Família; um radical avanço do desemprego, da informalidade, das populações de rua, dos setores mais vulneráveis. Ou seja, uma verdadeira barbárie sanitária, antes mesmo da pandemia surgir. E Jair tem a irresponsabilidade de ir à mídia defender a manutenção da aglomeração dos cultos evangélicos em meio a uma crise pandêmica como esta. Por quê?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .