Humanos não são coisas

NA NOITE DO DIA 22, após o levantamento do sigilo do vídeo, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da reunião do dia 22 de abril, que chocou o país tanto pelo conteúdo daquilo que foi dito – uma metralhada de palavrões numa reunião oficial do corpo de ministros com a Presidência da República – como pelo formato, sem uma pauta estratégica sequer para estudar a prioridade do envolvimento interministerial no combate à pandemia mundial da covid-19, que no dia de hoje já atinge 24.000 famílias dilaceradas pela perda de seus entes queridos (nos EUA já são 100.000 mortos), Bolsonaro, sem sequer pedir desculpas à nação pelos impropérios que saíram de sua boca naquela reunião oficial, voltou a afirmar, entre outras coisas, em entrevista coletiva na entrada do Palácio da Alvorada, que sua preocupação é a de *“armar o povo”*. (https://www.youtube.com/watch?v=erMEz39bx9U&feature=youtu.be, a partir do minuto 31). Ele que é um defensor público da tortura e de torturadores.

 

A história ensina, desde os tempos do império romano que, para instalar um Estado de ditatorial, suspendendo os direitos individuais, algumas condições precisam ser construídas no imaginário e na dinâmica social para legitimar esse tipo de golpe. Entre elas destacam-se o “tumultus” e a invocação da figura do “inimigo”. Segundo o pensador italiano Giorgio Agamben, no direito romano, “tumultus” seria uma situação de emergência, declarada pelo Senado romano, que reclamasse medidas excepcionais – “iustitium” – do poder soberano com o sentido de restabelecer a ordem legal. Já no tempo moderno, a palavra “exceção” vem da Constituição de Weimar (direito germânico), cujo instituto permitia que, em situações excepcionais, o governante pudesse instaurar um regime provisório de ditadura – Estado de exceção – para solucionar os problemas emergenciais.

 

Geralmente, essa construção discursiva sobre o “tumultus” e Estado de exceção se dá por meio da invocação ideológica da figura do *inimigo* da qual sua existência clama pela figura de um Estado autoritário. Nas ditaduras fascista, nazista, militar brasileira, como em qualquer ditadura, esses pressupostos estão sempre presentes. E isso se alicerça na ideia de que a soberania é algo superior do direito.

 

No Brasil tivemos a experiência ideológica desenvolvida pela Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 20 de agosto de 1949, um pilar da ditadura militar (1964-1985), denominada de Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Uma teoria da direita estudada e produzida desde 1954, para intervir no processo político democrático nacional, cujo expoente teórico máximo de então era o general Golbery do Couto e Silva, de íntimas e estreitas ligações com os EUA. Em seu livro “Geopolítica do Brasil” ele discorre sobre o tema central da doutrina: a segurança que buscará solapar o *inimigo interno*, seja ele cidadãos ou instituições brasileiras. Para Golbery, “não há como fugir à necessidade de sacrificar o Bem-estar em proveito da Segurança”. A segurança como ideologia do Estado Absoluto justificaria, para o general e seus militares seguidores, o sacrifício das liberdades e garantias constitucionais, dos direitos da pessoa humana. *“O inimigo interno deve a todo custo ser procurado entre o povo brasileiro”*. Portanto, não é um breve Estado de exceção, mas o Estado do Terror contínuo contra os cidadãos e cidadãs brasileiras.

 

Nesse breve espaço editorial de que dispomos, vale ressaltar o pensamento político do francês Jean-Jacques Rousseau, autor de “O Contrato Social”, um dos fundadores da democracia moderna, para quem um Estado só pode ter como inimigo outro Estado e nunca uma pessoa. Mesmo alguém que tenha cometido um crime, não perde sua condição de pessoa por ser criminoso. A democracia, por fundamentar-se no Direito das pessoas, deve realizar e garantir esses valores tão caros às conquistas históricas até aqui alcançadas pela humanidade.

 

Destaca-se ainda que essa revolução copernicana no plano da filosofia política é resultado da experiência antropológica cristã legando à humanidade a visão revolucionária de que os seres humanos, apesar de suas singularidades e diferenças pessoais e grupais, integram a mesma espécie, e como tais, todos são filhos do mesmo Pai, irmanados na mesma grande comunidade humana, acarretando como consequência que todos são iguais. O conceito de pessoa se opõe à concepção da figura do inimigo. A noção de humanidade se sobrepõe à noção de povo, materializando-se universalmente e ganhando contornos no direito positivo por meio do princípio da dignidade humana, como bem acentua o jurista Pedro Estevam Serrano.

 

Além disso, a antropologia cristã acentua que da mesma forma que a humanidade, *o sentido de comunidade* não se reduz a um mero fenômeno biológico ou natural. É uma convivência que se constrói dia a dia, num processo nunca acabado, a partir da primeira célula social que é a família. A crença político-ideológica fundada numa relação homogênea, adestrada e passiva representa um sério obstáculo à convivência humana em todas suas expressões, necessidades e conflitos destas decorrentes. Para a cultura cristã, toda relação nasce da necessidade, definida pela matéria, e emerge para a liberdade, definida pelo espírito. O desejo de posse (matéria) consuma-se no gesto do dom (espírito). Da necessidade chega-se a relações de reciprocidade. Os humanos só se universalizam plenamente quando se reconhecem como irmãos (do latim, “germanus”, aqueles que possuem o mesmo gérmen, a mesma origem humana).

 

O teólogo belga, Joseph Comblin, que escreveu importantes trabalhos sobre as consequências das ditaduras de direita na vida dos povos da América Latina, afirmava, em seu livro “A Ideologia da Segurança Nacional, que “no Sistema de Segurança Nacional todas energias dos cidadãos são canalizadas para a Segurança. Este sistema produz uma situação humana pior do que a escravidão porque o cidadão subordinado vai servir a um poder para dominar homens, quebrar suas vontades e destruir suas personalidades”.

 

No vídeo do dia 22 de abril, Bolsonaro declarou possuir e manter um sistema paralelo de inteligência. Mas não externou como funciona esse sistema privado, quem faz parte dele, qual o custo financeiro para manter essa estrutura operacional e de que forma ele realiza o pagamento, de qual fonte de renda ele a banca. Somando-se a esta estrutura paralela sua obsessão publicizada por armar a população, juntamente com o prestígio que ele dispensa às manifestações comandadas por milícias digitais e de rua, solicitando a volta do AI-5, o fechamento do Congresso e do STF, intervenção militar, além de categorizar a esquerda como o inimigo, tudo isso junto compõe um ethos (cenário) que vem desnudar intenções veladas de alimentar o “tumultus”. Com que objetivo?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .