Haverá guerra ainda?

Ontem, 02 de abril, completei 59 anos de vida. Aproveito este espaço para enviar minha gratidão pelas mensagens recebidas dos amigos, amigas e familiares concelebrando comigo este momento sempre particular: o mistério da chegada de cada pessoa à existência.
De ontem, gostaria de registrar pelo menos dois momentos-símbolos que reunissem todas as felicitações por mim recebidas. Primeiramente a saudação do cuidador da limpeza do prédio onde moro. No momento em que eu retornava da farmácia, ele saiu de onde estava, parou o seu afazer, para vir congratular-se comigo. Essa gentileza gratuita, sem nenhuma mediação utilitarista, de mãos vazias, mas com coração transbordante de atenção, fez-me perceber a grandeza da espiritualidade da qual Oscar é portador: um homem comum, com uma sensibilidade refinada em relação ao existir do outro.

 

A partir deste acontecimento, imediatamente o relacionei aos últimos fatos que rodeiam a pandemia da covid-19 no Brasil, no que tange ao descaso por parte do governo federal, principalmente nas pessoas do presidente “dito cristão”, Jair Bolsonaro, e do ministro da economia, o banqueiro Paulo Guedes, em dificultar e postergar a adoção de medidas emergenciais de ajuda aos setores trabalhadores formais e informais, além de desempregados, idosos e pessoas com deficiência que serão os mais fortemente atingidos por essa complexa crise mundial, enquanto os governos do mundo inteiro estão abrindo os cofres públicos, endividando-se, para prestarem o socorro urgente aos seus conterrâneos.
Da parte do presidente Jair, alimentando um discurso contraditório e raivoso, relativizando o valor da existência das pessoas com idade acima de 60 anos (essas poderão morrer porque não farão falta), causando desinformação pública propositalmente, passeando pelas ruas de Brasília e arredores, promovendo aglomeração social, além de adotar uma postura belicista de confronto aberto contra os governadores e prefeitos que responsavelmente estão seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) além de buscarem retirar um aprendizado prático das experiências de enfrentamento do vírus por parte da comunidade internacional.
Da parte do banqueiro Guedes, uma mesquinhez, que lhe é típica, e uma desumanidade na liberação dos recursos para a defesa da vida dos cidadãos e cidadãs brasileira. Em 22 de março Guedes propôs um mísero “voucher” de R$200,00 (duzentos reais) mensais para o imenso contingente de trabalhadores informais, cerca de 25 milhões de pessoas. Coube à Câmara dos Deputados elevar o valor para R$600,00 (seiscentos reais), três vezes mais que a proposta original de Guedes. É muito importante analisarmos isso. Que motivações reais levam Jair e Guedes a agirem assim?

 

O segundo fato relativo ao dia de ontem deu-se num telefonema com meu filho Guilherme, que mora no Japão. Diante dessa descompostura do governo brasileiro, ele me informou que as autoridades japonesas colocaram o Brasil no nível de RISCO 3 (numa escala que vai de 1 a 3), ou seja risco máximo em relação à pandemia covid-19.
O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis já havia acusado o governo federal brasileiro pela ausência de uma visão multidimensional dessa pandemia em um mundo interconectado, ao insistir em qualificar a pandemia como uma “gripezinha” ou “resfriadinho”, subestimando um fenômeno que se apresenta como a maior crise sanitária dos últimos anos. Segundo Nicolelis, algo que dificulta bastante o desenvolvimento de uma visão multidimensional é o fato de membros deste governo serem refratários ao conhecimento científico e afinados com o fundamentalismo religioso, a partir do presidente Jair em suas “lives” e pronunciamentos na TV, denotando total despreparo, motivo de chacota da comunidade internacional.

 

A complexidade da crise contempla um problema que já se avoluma desde 2008, quando empresas como a General Motors e o Banco Lehman Brothers vieram à bancarrota. De acordo com diversos institutos internacionais de análises financeiras, a proporção da dívida global em relação ao produto interno bruto mundial (riqueza real) atingiu uma marca histórica de mais de 322%, num total em 2019 de quase 253 trilhões de dólares. Isso é particularmente preocupante porque grande parte do acúmulo dessa dívida não é com hipotecas de pessoas físicas, como ocorreu em 2008. Agora a dívida é de corporações empresariais. Com o crescimento global reduzido, essas empresas auferem ganhos menores trazendo como consequência maiores dificuldades em honrar suas dívidas. O corona vírus 19 só vem aumentar algo que já está posto desde há muito tempo: o risco extraordinário de inadimplências a nível mundial.
Nunca é demais relembrar que a depressão de 1929, com a enormidade de falências bancárias e de milhares de famílias, gerou uma guerra mundial. Desde então o setor bancário foi obrigado pela imposição dos estados nacionais a se transformarem em um negócio de baixo risco e de suporte para a produção de riquezas reais. Mas a partir dos anos 1970, com o avanço voraz do neoliberalismo na política mundial, os donos do dinheiro implementaram diversas reformas desregulamentando as obrigações da atividade bancária, abrindo novamente o caminho para as crises financeiras como a da dívida externa da América Latina, nos anos 1980, as crises imobiliárias dos anos 1990, e a grande crise de 2008.

 

Baseado nas lições do economista Herb Stein (1916-1999), conselheiro de Richard Nixon, “se algo não continuar para sempre, então vai parar”. Logo, o problema vai começar de verdade depois que o corona vírus estiver controlado. Depois do “crash”, como o setor privado não estará em condições de assumir mais dívidas ou de consumir com a mesma voracidade de antes, será preciso intervenções governamentais violentas, muito mais além dos estímulos atuais, para substituir a queda de demanda privada. Um mundo mais equilibrado seria um mundo bem diferente daquele que nós conhecemos. Seria um mundo com menos dinheiro correndo solto, um mundo com menos empréstimos, menos crescimento, menos riqueza. Aí a crise sistêmica do capitalismo mostrará sua cara mais uma vez, em proporções bem maiores do que em 2008. O mundo conseguirá se reconfigurar pacificamente em uma nova ordem mundial equilibrada? Ou haverá uma nova guerra mundial? Em que proporções?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .