Todo inimigo é feio e mau. Nunca é bom e bonito. Portanto, uma ideologia de ataque precisa ser criada contra as maldades do inimigo. Sendo feio, não pode ser visto, precisa desaparecer da visibilidade midiática. As mazelas da vida social são obras de sua responsabilidade. Cabe a tal ideologia construir sempre mais uma imagem generalista degradante desse sujeito pessoal e coletivo chamado inimigo.
Ao lado dessa ideologia arquiteta-se uma estrutura de combate bélico e cultural para detê-lo. Bons e bonitos somos nós, por isso precisamos ser preservados. O inimigo é sempre extremista, fundamentalista, terrorista, bárbaro, pagão. Nós, ao contrário, somos razoáveis, magnânimos, íntegros e fiéis.
O patriarca Abraão gerou, pelo menos, três descendências genealógicas bem distintas: o judeu, o cristão e o muçulmano. Cada um com sua convicção tribalista de ser o povo escolhido e portador exclusivo da revelação do “Deus único e verdadeiro”.
Dessa convicção profunda nascem visões e formas de interpretar e de viver suas doutrinas que levam seus crentes a conferirem caráter absoluto ao seu modo de pensar. Tratam-se de sistemas fechados e binários, enxergam apenas o preto e o branco, incapazes de perceber a lógica da pluralidade das cores que constrói unidade em um mesmo arco-íris. Afinal, quem se sente portador de uma verdade absoluta, não pode tolerar outra verdade: o seu destino, portanto, é a intolerância. Os filhos da intolerância são a agressividade, o ódio, a guerra, o genocídio.
Entre os vários lados do fundamentalismo, há aquele cuja tese é afirmar que a sua Bíblia deve ser tomada ao pé-da-letra: cada vírgula presente naqueles textos, escritos por humanos, é inspirada por Deus. E Deus não erra. Logo, o Espírito Santo ilumina os crentes a compreenderem plenamente os textos bíblicos tais como são. Para estes, a criação do mundo se deu realmente em sete dias; o ser humano foi feito literalmente do barro; Eva foi criada a partir da costela de Adão e a este deve submeter-se; quem escuta o pastor, escuta o representante de Deus, devendo-lhe como consequência total obediência.
Noutra vertente cristã, o fundamentalismo recebe um nome particular de “restauração” (ou integrismo) cujo objetivo é o de restaurar a ordem fundada na relação matrimonial entre o trono e o altar, o poder político com o poder clerical. Visa-se a uma integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado e interpretado pelo corpo hierárquico da Igreja Católica, encabeçado pelo Papa, como por exemplo afirma o documento “Dominus Iesus”, de 2000, no qual se sustenta que a Igreja Católica é a única igreja de Cristo, devido à sucessão apostólica e à posse de todos os meios de salvação. Pode-se pressupor, então, que os crentes de outras igrejas e religiões correm o sério risco, a partir desta perspectiva conceitual, de viverem certa miopia espiritual e não conseguirem a plena salvação.
Comentando o referido documento, o teólogo Faustino Teixeira, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), afirmou que o diálogo requer outra postura, não a da superioridade, mas do acolhimento espiritual e de abertura de corações e mentes ao outro, implicando um contínuo processo de conversão e humildade.
Um grande místico de tradição islâmica, Jâmi (século XV), mostrou num poema a riqueza da universalidade da graça: “Aquela encantadora menina permanecia em seu quarto nupcial. Na sua solidão, jogava sozinha o jogo do amor. Ninguém sabia nada sobre ela. Mas a graça não suporta o grilhão do ocultamento. Se lhe fechas a porta, ela mostrará seu rosto na janela. Assim, a menina armou sua tenda fora dos recintos sagrados, revelando-se na alma e em toda a Criação. Em cada espelho manifestou a sua imagem, e sua história foi contada em todo lugar!”.
Há também o fundamentalismo economicista representado pela ideologia política do neoliberalismo. Ele também se apresenta como solução única (Deus único) para todas as carências da humanidade. Contudo, a lógica interna desse sistema é ser acumulador de bens, consequentemente, criador de desigualdades e de injustiças, explorador até o limite da força humana de trabalho, além de ser predador da natureza.
Esse fundamentalismo econômico é autoritário, não aceita o sistema político democrático participativo. Sua cosmovisão é materialista, individualista e sem qualquer freio ético. Basta pensarmos no Brasil do governo do Capitão defendendo a liberação do trabalho infantil; com a legislação de uma nova previdência diminuindo o valor de aposentadorias e pensões, e ampliando o tempo para o trabalhador e a trabalhadora se aposentar; com a liberação de agrotóxicos e armas de fogo; com os crimes das mineradoras da Vale em Minas Gerais. Isso sem falar no discurso repleto de golpismo, racismo, machismo e autoritarismo, enfatizando a lógica do inimigo interno.
Samuel P. Huntington, assessor do Pentágono no governo W. Bush, em sua tese sobre o “choque das civilizações” faz uma observação relevante. No mundo contemporâneo a religião é uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas. O que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse econômico. Aquilo com que se identificam são as convicções religiosas, a família e o credo. É por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar a vida.
Portanto, há um desafio posto. Mesmo se não substituem as instâncias econômicas, políticas e militares, cabe às religiões repensarem suas formulações profundas de uma mística alimentadora do espírito dos povos, de forma crítica, capaz de romper com essa visão binária do mundo para alcançar a diversidade das cores do arco-íris humano visando à superação dos fundamentalismos, abrindo assim uma cultura de diálogo, compreensão e tolerância com o outro, uma cultura garantidora da paz, da dignidade de todos os humanos e da vida do nosso planeta.