GATOS E O POETA DA SARJETA, por Íris Cavalcante

O cara que sabia das coisas era o Bukowski. Ele sim que tanto conviveu, escreveu e rendeu-se ao fascínio dos gatos, essas criaturas inescrutáveis e sobreviventes, como ele os considerava.

Os gatos surgiram em minha vida na maturidade, num momento bem particular. Achei que era amor à última vista ou talvez, a derradeira chance desse sentimento redimir-se perante mim. Aposta certeira.

Ali nasceu um amor, um insubmisso amor, como sempre deve sê-lo. Uma troca de energia, cuidado e proteção que vai além de um sentimento; um olhar que desnuda corpo e alma, com ternura e mistério.

O dia começa cedo. Pela fresta da janela, a madrugada cinza vai-se azulando, enquanto a pequena Flô olhos cor-de-mel, me desperta com mordidas nos pés, lambidas, ronronados e pulos aleatórios sobre minha cama e todo o resto de mim. Território particular dela. Deslizo para dentro dos lençóis e refugio-me num casulo morno onde encontro o melhor do sono, o entresono. Aprendi com os gatos a cochilar e manter-me alerta.
Ah, meus amigos e minhas amigas, mas Flô não admite indiferença e segue em seu firme propósito de me acordar. Ela quer atenção e cuidados, comida, água e caixa de areia limpa: suas necessidades diárias. Alguns minutos de carinho, um dia todo para dormir e uma noite a vagar.

Aqui, não há mais como evitar o dia, que já entrou pela casa, com toda a sua claridade. Abro janelas e vejo a cidade desperta emitindo os primeiros ruídos de uma manhã. No sofá, a majestosa Gal olhos cor-de-céu, desperta sobre as almofadas, adaptando seu olhar à clareza do dia. São irmãs de pai e mãe, Gal e Flô, afastadas e unidas pelo destino que me usou como instrumento para adoção delas, num intervalo de seis meses. Senti uma absurda felicidade no encontro das irmãs, como se a menina que fui, reescrevesse a narrativa de seus próprios desencontros fraternos.

Eis que as duas se revelam parceiras na troca de carinho e aventuras, mantendo cada uma, sua individualidade e personalidade próprias, iguais nas diferenças. Elas se entendem sem competições, como deveriam ser as relações humanas, no sentido da completude. Aprendam, humanos!
A mais velha, Gal, defende a posição com desenvoltura e altivez, sedutora e econômica na demonstração de afetos, hábil em mostrar-se e tornar-se invisível quando bem entende. A pequenininha Flô não tem posição a defender. Faz-se toda graça: brinca, pula, se espatifa no chão assim mesmo sem noção, de qualquer altura – gatos não temem o perigo – ronrona, mia, lambe, morde, não economiza nas ternuras nem nos verbos, de tão intensa que é, “a imagem da maquinaria eterna” como escreveu o poeta da sarjeta.

Bukowski, como os gatos, também surgiu em minha vida, na maturidade. Não sou capaz de imaginar o efeito que teria sua poesia em minha vida, se o tivesse conhecido na adolescência.
Hoje sou poeta e uma mulher de gatos. No exato momento em que digito esse texto, Gal passa o rabo rijo em minhas pernas e a outra pula no teclado, interrompendo minha escrita, numa confiança que somente a esses seres ronronantes é possível.

O ácido Bukowski, com seu inevitável desencanto social, sabia das coisas e tinha razão em muitas, mas na minha opinião, o gato não é o “belíssimo diabo”, está mais para um deus, com poderes de nos fazer um bem que está além de nossa compreensão.
Bukowski chegou a ter 6. Minha amiga Heliana, de Brejo Santo, tem 11. Todos originários da família de Gabriel de Deus e Dóris Lessing, pai e mãe de Gal e Flô. Somos duas mulheres de gatos, pois! E acho mesmo que o Deus que uniu nossos caminhos tem afeição por gatos. Nos tornamos amigas para que esses felinos adoráveis, vagantes e insubmissos se mantivessem numa só família: a dos afetos.

– É, meu caro Buk, você é mesmo para poucos e gatos não são para os fracos.
Com licença poética, escrevo esta crônica – juro que pedi a ele! Hoje os gatos “me contam sem esforço tudo que há para saber.”

Uma dose a Bukowski! Para uns, o poeta da sarjeta, mas prefiro vê-lo como o poeta apaixonado por gatos. Inspirado por esses seres misteriosos, ele transformou as misérias do cotidiano numa das poéticas mais singulares do século passado.
©️Íris Cavalcante

Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.

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Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.

1 comentário

  1. Osvaldo Euclides

    Gal e Flô, como costumam ser felizes as escolhas de nomes para os bichinhos,. Curtos, simples, sonoros e expressivos.