Gato – contemporâneas e irreverentes reflexões de Murr, por Heliana Querino

No post anterior, Gato – Adorável insubmissão -, escrevi sobre a preferência de pessoas autoritárias por cães, e, ao mesmo tempo, não sentirem nenhuma simpatia pelos felinos. A facilidade de obediência e admiração dos cães pelo seu tutor, o modo expansivo ao mostrar seu carinho com rabinho abanando e pequenos grunhidos de alegria, superestima o narcisismo dos donos: e até uma pessoa indiferente, insensível ou grosseira pode ter, caso crie um cãozinho, pelo menos um ser existente que o admire. Agora observem os gatos, acontece o oposto: os bichanos parecem nunca demonstrar admiração – discretos e elegantes, – no máximo, exprimem afeto. São eles os objetos de contemplação, são eles os narcisistas. Um ditado famoso, o cão diz: “os homens fazem tudo por mim, me dão comida, um lugar para viver – eles devem ser deuses. O gato diz: os homens fazem tudo por mim, me dão comida, um lugar para viver. Devo ser um deus”.

Então, os gatos mesmo juntos, mantêm a distância. Eles fixam o olhar para os humanos e não se sabe o pensamento deles. Aceitam a comida, o sofá quentinho, a torneira da pia com água limpinha e depois partem sem agradecer. Eles vivem entre os humanos sem verdadeiramente fazer parte.

Esta atitude do gato é também a atitude das pessoas que olham com distância crítica para a sociedade onde vivem. Essa distância, em alguns, pode ser raivosa. E pode também ser irônica. É a atitude dos que sorriem em silêncio e diante dos seus contemporâneos nem sempre dizem o que pensam, e quando dizem, é somente a um amigo capaz de compreender. Assim pode nascer a sátira, um gênero literário tão velho quanto o mundo.

Não se trata de autores sarcásticos usarem a pele de um gato para satirizar a sociedade. Eles descrevem os seus similares, como um gato poderia fazer.

O mais célebre deles é o romântico autor e desenhista alemão E. T. A. Hoffmann.

O escritor E. T. A. Hoffmann (1776 – 1822) viveu na Prússia, o maior estado da Alemanha naquela época. Além disso era o estado mais rigoroso, o mais militarizado e o mais burocrático. Hoffmann fazia parte do romantismo. Hoje ele é considerado um dos grandes autores alemães de seu tempo. Mas a vida de Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann era difícil. Ele queria ser músico, no entanto precisava ganhar a vida, e trabalhava num cargo de administração do Estado, por sinal, uma tarefa que odiava. As suas obras, volta e meia mostram um caráter fantástico, e até mesmo um lado “sombrio”. No livro “Reflexões do gato Murr” (inspirado no gato de estimação de Hoffmann, e muito amado pelo seu dono), publicado em dois volumes, em 1819 e 1821, Hoffmann entrelaça duas histórias. Por um lado, a biografia imaginária e fragmentada do músico Kreisler – figura autobiográfica – que sofre com as contradições entre as suas grandes inspirações artísticas e os seus ideais e a realidade banal – um contexto tipicamente romântico. Por outro lado, o gato Murr conta ele mesmo a própria história. Ainda por cima, Murr se considera um gênio, mas na verdade é um burguês comum e satisfeito consigo mesmo, bem longe do ideal romântico do “gênio atormentado”. Murr acredita em toda sua existência como um progresso contínuo em direção à composição de uma personalidade completa: ele pensa viver de um modo onde todas as experiências convergem para construção de uma pessoa rica em cultura e espírito. Aliás, esse era também o assunto dos grandes “romances de formação” daquela época, talvez o mais conhecido seja “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister” de Johann Wolfgang Goethe, o rei da literatura alemã. A história de Murr é uma paródia do romance de formação: o gato é vaidoso e cheio de si, porém, sem profundidade espiritual. Ele quer tão somente imitar as pessoas de grande cultura. Falando de Murr, Hoffmann escreve a sátira do burguês alemão daquele período. Muitos detalhes do romance contêm referências irônicas a costumes e acontecimentos de então. Hoje é difícil compreender tais alusões. Apesar disso, a leitura do romance resiste,  inclusive em traduções portuguesas. Continua sendo engraçado, porque situações e personagens idênticos sempre existem. Foram escritas muitíssimas sátiras nos últimos séculos; a originalidade de Hoffmann está no fato dele utilizar a forma antiga da fábula, onde os animais representam homens. Uma tradição iniciada na antiguidade com Esopo, sendo um dos seus autores ilustres La Fontaine, na França do século XVII.

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

Mais do autor - Twitter - Facebook - LinkedIn

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista