No post anterior, Gato – Adorável insubmissão -, escrevi sobre a preferência de pessoas autoritárias por cães, e, ao mesmo tempo, não sentirem nenhuma simpatia pelos felinos. A facilidade de obediência e admiração dos cães pelo seu tutor, o modo expansivo ao mostrar seu carinho com rabinho abanando e pequenos grunhidos de alegria, superestima o narcisismo dos donos: e até uma pessoa indiferente, insensível ou grosseira pode ter, caso crie um cãozinho, pelo menos um ser existente que o admire. Agora observem os gatos, acontece o oposto: os bichanos parecem nunca demonstrar admiração – discretos e elegantes, – no máximo, exprimem afeto. São eles os objetos de contemplação, são eles os narcisistas. Um ditado famoso, o cão diz: “os homens fazem tudo por mim, me dão comida, um lugar para viver – eles devem ser deuses. O gato diz: os homens fazem tudo por mim, me dão comida, um lugar para viver. Devo ser um deus”.
Então, os gatos mesmo juntos, mantêm a distância. Eles fixam o olhar para os humanos e não se sabe o pensamento deles. Aceitam a comida, o sofá quentinho, a torneira da pia com água limpinha e depois partem sem agradecer. Eles vivem entre os humanos sem verdadeiramente fazer parte.
Esta atitude do gato é também a atitude das pessoas que olham com distância crítica para a sociedade onde vivem. Essa distância, em alguns, pode ser raivosa. E pode também ser irônica. É a atitude dos que sorriem em silêncio e diante dos seus contemporâneos nem sempre dizem o que pensam, e quando dizem, é somente a um amigo capaz de compreender. Assim pode nascer a sátira, um gênero literário tão velho quanto o mundo.
Não se trata de autores sarcásticos usarem a pele de um gato para satirizar a sociedade. Eles descrevem os seus similares, como um gato poderia fazer.
O mais célebre deles é o romântico autor e desenhista alemão E. T. A. Hoffmann.
O escritor E. T. A. Hoffmann (1776 – 1822) viveu na Prússia, o maior estado da Alemanha naquela época. Além disso era o estado mais rigoroso, o mais militarizado e o mais burocrático. Hoffmann fazia parte do romantismo. Hoje ele é considerado um dos grandes autores alemães de seu tempo. Mas a vida de Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann era difícil. Ele queria ser músico, no entanto precisava ganhar a vida, e trabalhava num cargo de administração do Estado, por sinal, uma tarefa que odiava. As suas obras, volta e meia mostram um caráter fantástico, e até mesmo um lado “sombrio”. No livro “Reflexões do gato Murr” (inspirado no gato de estimação de Hoffmann, e muito amado pelo seu dono), publicado em dois volumes, em 1819 e 1821, Hoffmann entrelaça duas histórias. Por um lado, a biografia imaginária e fragmentada do músico Kreisler – figura autobiográfica – que sofre com as contradições entre as suas grandes inspirações artísticas e os seus ideais e a realidade banal – um contexto tipicamente romântico. Por outro lado, o gato Murr conta ele mesmo a própria história. Ainda por cima, Murr se considera um gênio, mas na verdade é um burguês comum e satisfeito consigo mesmo, bem longe do ideal romântico do “gênio atormentado”. Murr acredita em toda sua existência como um progresso contínuo em direção à composição de uma personalidade completa: ele pensa viver de um modo onde todas as experiências convergem para construção de uma pessoa rica em cultura e espírito. Aliás, esse era também o assunto dos grandes “romances de formação” daquela época, talvez o mais conhecido seja “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister” de Johann Wolfgang Goethe, o rei da literatura alemã. A história de Murr é uma paródia do romance de formação: o gato é vaidoso e cheio de si, porém, sem profundidade espiritual. Ele quer tão somente imitar as pessoas de grande cultura. Falando de Murr, Hoffmann escreve a sátira do burguês alemão daquele período. Muitos detalhes do romance contêm referências irônicas a costumes e acontecimentos de então. Hoje é difícil compreender tais alusões. Apesar disso, a leitura do romance resiste, inclusive em traduções portuguesas. Continua sendo engraçado, porque situações e personagens idênticos sempre existem. Foram escritas muitíssimas sátiras nos últimos séculos; a originalidade de Hoffmann está no fato dele utilizar a forma antiga da fábula, onde os animais representam homens. Uma tradição iniciada na antiguidade com Esopo, sendo um dos seus autores ilustres La Fontaine, na França do século XVII.