GABINETE DO ÓDIO – O GRANDE IRMÃO BOLSOARO: FARSA E TRÁGEDIA NO BRASIL

O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começas a me compreender?” – George Orwell [1988].

Na sua obra de análise política, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx lembra que Hegel afirmou que grandes fatos e personagens se repetem duas vezes na história, mas que ele havia se esquecido de dizer que uma vez como tragédia e outra como farsa. Aqui no Brasil, às vezes temos tragédias que se seguem a farsas, como no caso da tragédia de Brumadinho, e farsas que se seguem a tragédias, em ciclos que se repetem mais de duas vezes na forma de interrupções de governos. A eleição de Bolsonaro, em 2018, foi construída como parte de uma farsa, em seguida, o seu governo se constitui numa tragédia.

A FARSA

A farsa que levou Bolsonaro a ser eleito foi fruto de um embuste organizado por parte de agentes do judiciário, sob o comando do juiz Sérgio Moro e sua equipe, que, confessadamente, condena com base em convicções e não em provas, mais a conveniência de parte do Supremo Tribunal Federal (STF), que, juntos, destroçaram o Estado de Direito e violaram a Constituição do nosso país. O resultado dessa farsa foi o golpe contra o governo Dilma em 2016, e a prisão do ex-presidente Lula, com a intenção clara de evitar que ele participasse da disputa eleitoral em 2018.

Ao constatar a farsa que contribuiu para o desastre social, econômico e político que vivemos hoje no país, não ignoramos que o governo Dilma chegou a um ponto de crise de governabilidade. No entanto, não havia motivo para o golpe, por isso inventaram as chamadas “pedaladas fiscais”, algo tão tosco que ninguém sabe explicar. Porém, quando explicado tecnicamente, chaga-se à conclusão de que não havia motivo constitucional para a perda de mandato. O pior é que o STF deu apoio moral e político ao golpe, abandonando a sua função de ser guardião maior da Constituição. A televisão mostrou, para todo país e o mundo, o motivo ou o argumento com o qual cada parlamentar fundamentou o seu voto em favor do golpe. Alguns, que votaram pelo fim da corrupção, na semana seguinte estavam sendo presos por corrupção, a exemplo de Geddel Vieira (PMDB/MDB), que mantinha em um apartamento em Salvador 52 milhões de reais, tudo fruto de corrupção.

A prisão de Lula é um caso emblemático e cheio de furos. Nunca ficou comprovado que ele era o dono do apartamento do Guarujá. Embora haja algumas evidências, os investigadores não conseguiram juntar provas, prevalecendo, assim, um julgamento político e uma espécie de humilhação à figura do ex-presidente Lula. Não precisa ser petista, tampouco gostar do Lula, para saber que o empenho de Sérgio Moro no caso fazia parte de seus interesses políticos, financeiros, carreiristas e a busca de fama.

A solução para a crise econômica provocada pelo neoliberalismo e o esgotamento do neodesenvolvimento petista, dada pelos setores rentistas e extrativistas brasileiros, foi propor mais neoliberalismo. A campanha neoliberal contra o investimento dos recursos públicos em políticas públicas para o combate à pobreza e contra a distribuição de renda foi conjugada com uma ostensiva campanha de ódio ao PT, identificado como partido comunista, e o comunismo identificado como desordem, com corrupção , com a desvalorização dos valores da família e “dos bons costumes”.

O que dava suporte material para essa campanha encontrar eco era a onda de corrupção constatada durante a vigência dos governos petistas: Mensalão e Lava Jato, e a incapacidade do governo Dilma de enfrentar a crise e de manter uma base de sustentação política para o seu mandato. Nesse sentido, os meios de comunicação, as redes sociais, com seus movimentos de alta intensidade e a divulgação de fake news, foram os meios de manufaturamento do imaginário, da opinião e da vontade política da sociedade para a concretização da farsa.

A campanha de Bolsonaro foi montada em torno da articulação de três eixos: combate ao comunismo (entendido como distribuição de renda e combate à pobreza), que se expressava no ódio ao PT e crítica às chamadas oposições; combate à corrupção e à violência, mesmo que o histórico do candidato fosse de envolvimento com corrupção e violência; combate à ideologia de gênero, embora as propostas fossem ideológicas, como a “escola sem partido”, a “cura gay” e a todo um conjunto de orientações de caráter evangélico. O resultado foi uma cegueira coletiva de parte de um terço da população e o vacilo das oposições no primeiro e durante o segundo turno, o que contribuiu para a eleição de um ser fascista para ocupar o cargo de presidente.

O GABINETE DO ÓDIO

Bolsonaro foi eleito, mesmo sem ter um projeto para o Brasil, sem ter participado dos debates, prometendo fazer uma administração técnica, sem politicagem e no combate à presença da ideologia nas ações de governo. Mas, ao contrário do que afirmava, foi o único presidente que inovou ao criar dentro do Palácio do Planalto um núcleo ideológico conhecido como “Gabinete do Ódio”.

Gabinete do Ódio” não é uma denominação pejorativa criada pela oposição, é o termo como os próprios integrantes do governo Bolsonaro passaram a denominar uma facção liderada pelo filho do presidente, Carlos Bolsonaro, vereador eleito no Rio de Janeiro, cuja função inicial foi a de produzir relatórios diários com interpretações sobre fatos da realidade política e econômica nacional e internacional com orientações de medidas a serem adotadas pela presidência da República, bem como a indicação de inimigos internos e externos ao governo a serem difamados e combatidos.

Além de Carlos Bolsonaro, três assessores, do seu gabinete no Rio de Janeiro, integraram a composição original da facção: Tércio Arnaud, José Martins Sales Gomes e Mateus Diniz. Depois se integraram Felipe Martins, assessor especial da presidência da República, que é muito ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL – SP), conhecido como o filho 3 do presidente; Célio Faria Júnior, chefe da assessoria especial da presidência da República, indicado pelo próprio Bolsonaro, que o trouxe da Marinha; e Leonardo Rodrigues de Jesus (o Leo Índio), assessor parlamentar que funciona como uma espécie de espião do governo Bolsonaro (Fonte: FSP edição 24/03/2020).

Do Gabinete do Ódio ainda participam o chamado filho 2 do presidente, Flávio Bolsonaro, senador pelo Rio de Janeiro; o ministro da Cidadania, Onxy Lorenzoni; o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles; o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; o ministro da Educação, Abraham Weintraub. Os membros do núcleo ideológico do governo são chamados de terraplanistas, e dizem, alguns colunistas nas mídias, que são seguidores do ideólogo Olavo de Carvalho, que exerce influência nas atitudes e pensamentos do núcleo duro do Palácio do Planalto.

A TRAGÉDIA

O governo Bolsonaro é uma tragédia para a estrutura organizativa, constitucional e para a vida da maioria da população brasileira. O mandato de Bolsonaro é a continuidade do golpe e das políticas de governo golpista de Temer. Todavia, de forma mais implacável no desmonte da estrutura produtiva e dos serviços públicos do Estado por meio das privatizações, da reforma da previdência e das reformas que estão em curso, como reforma tributária e administrativa. É um desmonte da Constituição cidadã de 1988 para facilitar o processo de acumulação de capital nas mãos de rentistas e setores extrativistas nacionais e internacionais.

A conduta autoritária de esvaziamento das instituições, como a decretação do fim da participação da Sociedade Civil nos conselhos nacionais, e a recusa em negociar com o Congresso Nacional e de respeito ao STF, justificada com a falácia de que temos uma nova política e um governo que não pratica o “toma lá dá cá”, entra em contradição com o discurso e a prática unidimensional fascista praticada por Bolsonaro e seus filhos. O Gabinete do Ódio, que funciona no terceiro andar do Palácio do Planalto, é o “Grande Irmão, o partido e a polícia do pensamento, seu lema é guerra, é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”, como bem formulou George Orwell, na sua clássica obra “1984”, na qual afirma que, no totalitarismo, figuras como o ídolo, o mito e o canalha são construídas ou incorporadas como seus componentes. E a eleição de Bolsonaro é uma prova do que uma economia capitalista, no modelo neoliberal rentista e extrativista, pode conduzir.

O Gabinete do Ódio, o Grande Irmão, passou a administrar a manutenção das redes sociais da presidência da República e todo o planejamento de campanhas digitais do governo federal, o que implica na contratação de empresas especializadas na emissão de fake news. Segundo Depoimento da deputada federal Joice Hasselman (PSL – SP), ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso Nacional, o Gabinete do Ódio usa dinheiro público para fazer disparos de mensagens falsas e difamações por robôs, e que um único disparo custa 20 mil reais, em média. E, acrescenta Joice Hasselman, que de maneira legal são destinados 500 mil reais de dinheiro público para perseguir desafetos (Fonte: Estadão/Gazeta do Povo, edição de 06/12/2019).

Bolsonaro, a partir do chamado comitê do ódio, orienta a tragédia cujo alvo é a eliminação dos pobres, dos desempregados, dos negros, dos homossexuais, das mulheres, dos povos indígenas e da democracia. Sérgio Moro conseguiu o que negava quando juiz, um cargo no governo para ser o ministro da justiça a serviço exclusivamente dos interesses da família Bolsonaro e de seus aliados, para criar medidas que possam lotar os presídios de negros, de filhos e filhas de pobres, que muitos entendem como medidas de segurança, quando são, na realidade, medidas racistas de limpeza étnica.

Os vários ministros da Educação, nomeados para desarticulação da estrutura de ensino público do Brasil, combater o processo de avanço da pesquisa científica pública no país e privatizar as universidade, passando a imagem que elas são espaços para a proliferação da “balbúrdia” e de gente que não estuda e frequenta a universidade para usar drogas. O ministro, Mandetta, da Saúde, foi indicado para desestruturar o Sistema Único de Saúde (SUS), privatizar a saúde e fortalecer os interesses dos planos privados de saúde. A primeira medida foi acabar com os Programas Mais Médicos, sob a alegação de que era um programa para infiltração de comunistas cubanos no país.

Na área de Agricultura e de Minas e Energia, o foco é acabar com a agricultura familiar e com a política de desapropriação de terra para quem não tem terra, liberar o uso indiscriminado de agrotóxicos e isentar o setor de pagamento de impostos, financiar o agronegócio predatório, promover o desmatamento como forma de entregar nossas riquezas aos setores extrativistas, expulsar os povos indígenas e quilombolas de suas terras para que madeireiros e mineradores possam abrir novos espaços de acumulação de riqueza destruindo o meio ambiente, não demarcar as terras indígenas e nem combater os desastres ambientais, como nos incêndios florestais que aconteceram recentemente no país. Bem como a omissão do Ministério do Meio Ambiente frente à tragédia de Brumadinho, o maior desastre ambiental da América Latina.

A CRISE DO CORONAVÍRUS

Quando o coronavírus chegou ao Brasil a atitude do governo Bolsonaro foi de ignorar a situação e de achar que o país não seria afetado. Logo veio a primeira polêmica, que foi em torno do resgate de brasileiros na China: Bolsonaro foi contra e só depois de muita pressão recuou e autorizou o resgate. Quando os primeiros casos foram confirmados, nenhuma medida foi tomada, tampouco alguma estratégia nacional foi adotada. O próprio presidente fez uma viagem com uma comitiva aos Estados Unidos e voltou com vários participantes testados positivo para a covid-19, o que contribuiu para a sua proliferação no país. Em seguida, no que pese a recomendação para o recolhimento, o presidente tomou algumas medidas na contramão, além de debochadas, frente às recomendações do Ministério da Saúde. Diante da presença do coronavírus no Brasil, o Gabinete do Ódio estabeleceu duas estratégias extremamente irresponsáveis e de alto risco.

A primeira estratégia foi a de se colocar frontalmente contra os protocolos e recomendações da Organização da Saúde (OMS) e de todas as orientações técnicas e científicas dadas pelos os profissionais da área de saúde, utilizando um discurso falacioso de responsabilidade com o futuro do país, de garantia do emprego para os mais pobres e do crescimento econômico, elementos defendidos como mais importantes do que algumas mortes causadas pelo o que foi classificada por Bolsonaro como “uma possível gripezinha”. Em uma entrevista coletiva à imprensa, o presidente afirmou que não havia morrido de facada e que não seria uma gripezinha que haveria de derrubá-lo.

A crise do coronavírus chegou ao país e o governo transferiu de forma rápida e sem burocracia 1,2 trilhão para o setor financeiro, quando no Brasil os bancos nunca passaram por crise, vivem tendo lucros maiores que os bancos de países desenvolvidos. Todavia, a ajuda aos pobres, aos desempregados, aos favelados, aos sem-teto, aos moradores de rua, aos indígenas e aos quilombolas não existe, e o que é aprovado pelo Congresso, mesmo que timidamente, não chega efetivamente nas mãos dos que necessitam, e ainda é criticado pelo presidente, que acha que toda ação deve refletir a sua vontade, e qualquer medida, de qualquer um dos outros poderes, deve antes ser aprovada por ele. Bolsonaro pensa que um presidente quando é eleito, mesmo que com apenas um terço dos votos, como é o caso dele, torna-se um ser absoluto.

O verdadeiro objetivo da primeira estratégia era mobilizar setores conservadores da sociedade e eleitorados fiéis ao governo para ações em defesa do mesmo nas redes sociais e estimulá-los a ocuparem as ruas em manifestações contra o Congresso, o STF, os governos estaduais e a imprensa, identificados por eles como os responsáveis pelo desgaste e isolamento do governo.

A linha de argumento do Gabinete do Ódio, instalado no Palácio do Planalto, partia da premissa mentirosa de que a covid-19 foi causada por “um vírus chinês” que mata apenas 1% dos infectados. Portanto, não é letal, mas que ao chegar ao Brasil estava sendo utilizada pela oposição e pela imprensa para desgastar o governo. Com isso, poderia se criar uma narrativa de proteção para enfrentar o fracasso econômico das medidas adotadas por Paulo Guedes, que já estavam dando fortes sinais antes da chegada do vírus, culpando os defensores do isolamento social pela recessão econômica em que o governo havia colocado o país.

Diante da atitude do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em seguir os protocolos e as recomendações da OMS, o Gabinete do Ódio passou a receber apoio de setores empresariais e de pastores ligados ao mercado de serviços religiosos e exploração da fé. Contra todas as evidências demonstradas pela experiência de outros países, de que o isolamento social é a medida mais eficaz no controle da proliferação da covid-19, partiu-se para uma prática de fascismo social montada na ideia de que “o Brasil não pode parar, que não se pode priorizar a saúde de velhos em relação ao emprego”.

O empresário Júnior Durski, dono da rede Madero, um dos financiadores da campanha de Bolsonaro a presidente da República, colocou-se de público contra o bloqueio (lockdown), justificando sua posição com o seguinte argumento: “não podemos parar por conta de cinco ou sete mil pessoas que vão morrer”. No dia seguinte demitiu mais de 600 funcionários (Fonte: Estadão/Outline, 2/04/2020).

Do mercado de serviços religiosos e exploração da fé, partiram pedidos de vários pastores para que Bolsonaro impedisse o isolamento social. Os pastores Silas Malafaia e Marcos Feliciano – deputado federal (PSC – SP), idealizador da ideológica “cura gay” e articulador do governo Bolsonaro, juntos às igrejas evangélicas, solicitaram o fim do isolamento social. O bispo Edir Macedo, da multinacional Igreja Universal do Reino de Deus, afirmou que “a Covid-19 é uma tática do Satanás e um trabalho da mídia” (Fonte: Estadão/Outline, 2/04/2020).

Como demonstração de força, Bolsonaro enfrentou a discordância de parte dos militares que participam de uma reunião com membros do Gabinete do Ódio, e no dia 24 de abril, terça-feira, fez um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV se colocando contra a medida de isolamento social, criticando a suspensão das aulas nas escolas e universidades, atacando os governadores dos estados e suas medidas. Todavia, durante toda a sua fala e um bom tempo além, em todo o país as pessoas protestaram batendo panelas e gritado “fora Bolsonaro” nas janelas de suas residências. Foi o sinal de que o governo havia perdido a legitimidade total, que ele estava totalmente apartado dos interesses da sociedade, que não representava mais do que a si próprio e que não tinha mais condições e nem sentido continuar no cargo (Fonte: FSP edição 02/04/2020).

Como Bolsonaro, além de fascista, demonstra ser um psicopata, na sexta-feira, dia 28 de abril, em um afronto à Nação, ele publica um decreto em reposta aos interesses dos pastores, permitindo a abertura dos templos para o funcionamento do mercado de serviços religiosos e exploração da fé.

A segunda estratégia adotada pelo Gabinete do Ódio foi o ataque ao povo e ao governo chinês. A partir de mensagens de conteúdos preconceituosos e racistas, o senador Flavio Bolsonaro criou uma situação delicada nas relações entre China e Brasil. Para agravar a situação, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, a partir da resposta do embaixador da China ao Brasil, destinada a Flávio Bolsonaro, emite nota oficial solicitando um pedido de desculpas ao povo e ao governo brasileiros. Quando a situação parecia acalmada, repentinamente o ministro da Educação, Abraham Weintraub, usa as redes sociais para ofender a China e o seu povo. O que gerou um pedido de retratação oficial por parte do governo da China.

Não é tão fácil de entender o objetivo dessa segunda estratégia. O que se pode imaginar é que ela faz parte de um raciocínio tosco de demonstrar subserviência do governo brasileiro ao governo dos Estados Unidos, que tem na China o seu maior rival na disputa pela liderança do mercado global. Essa estratégia foi tão absurda que encontrou resistência por parte da população, foi criticada por setores da mídia, principalmente dos que fazem a cobertura econômica, e foi totalmente contestada pelos setores extrativistas do agronegócio, que têm na China o principal destino para suas mercadorias. As duas estratégias, na realidade, foram atos de demência e aposta no caos, a partir das quais o objetivo só pode ser o de usar o mal para atrair mais mal.

UMA POLÍTICA GENOCIDA

Descontente e contrariado com os governadores e prefeitos que, agindo com zelo pela vida, passaram a seguir as orientações e as recomendações dos protocolos da OMS para o caso da pandemia do coronavírus, Bolsonaro emitiu a Medida Provisória (MP) n.º 926/2020, que restringia a liberdade de prefeitos e governadores na tomada de ações contra a pandemia. Diante do fato, o senador Weverton (PDT-MA), por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) questionou junto ao STF a validade da referida MP. No dia 15/04/2020, ao se pronunciar, o STF garantiu por unanimidade que os estados e municípios podem regulamentar medidas de isolamento social, fechamento de comércio e outras restrições.

A decisão do STF é diferente do entendimento do presidente, que acha que cabe a ele definir quais serviços devem ser mantidos ou não. Ao expor seu voto, o ministro do STF, Gilmar Mendes, afirmou: “o presidente da República dispõe de poderes, inclusive para exonerar seu ministro da Saúde, mas ele não dispõe de poder para, eventualmente, exercer uma política pública de caráter genocida” (Pronunciamento durante sessão do STF, dia 15/04/2020).

No dia seguinte à derrubada, pelo STF, da MP n.º 926/2020, Bolsonaro demitiu o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e indicou para o cargo o médico oncologista Nelson Teich, dono de uma rede privada de clínicas e um opositor do sistema público de saúde. Na sua fala, como novo ministro, Nelson Teich declarou: “tenho alinhamento completo com o presidente”. (O Povo-online, 16/04/2020). Logo em seguida, passou a circular nas redes sociais um vídeo em que, numa palestra que o senhor Nelson Teich proferiu em um congresso de Oncologia, em maio de 2019, ele afirma: “Você vai ter que fazer escolhas. Então você vai ver no que você vai investir. Então, se eu tenho uma pessoa que é mais idosa, com idade mais avançada, e para ela melhorar eu vou gastar o mesmo dinheiro que com um adolescente que vai ter a vida inteira pela frente, e a outra é uma pessoa idosa, qual vai ser a escolha?”. Esse é a concepção do novo ministro da Saúde de Bolsonaro. O nome disso é eugenia. É pura verdade quando o novo ministro diz que está totalmente alinhado com a política genocida do presidente.

Uma política de extermínio dos pobres, negros, indígenas, idosos e de empobrecimento da classe média é a estratégia das políticas públicas do governo Bolsonaro orientada pelos ministérios da Justiça (Sérgio Moro), da Educação (Abraham Weintraub) e da Fazenda (Paulo Guedes). Nesse contexto, a crise do coronavírus foi uma oportunidade para o governo defender abertamente uma ação governamental genocida. Não se trata de um caso isolado, pois as pessoas escolhidas por Bolsonaro têm o perfil certo. Os que assumem cargos e se apavoram com tanta intensidade são fritados pelo Gabinete do Ódio e demitidos pelo presidente.

Numa fala para investidores do mercado financeiro, em um evento organizado pela XP Investimentos, no dia 4 de abril de 2020, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou que o isolamento social iria aprofundar a recessão. Ao mostrar um gráfico sobre o comportamento de uma economia recessiva, ele disse: “para ilustrar que essa troca (entre salvar vidas ou combater a recessão) é uma troca que está sendo considerada”. E conclui que reduzir mortes por coronavírus é pior para a economia (Fonte: The Intercept Brasil – Amanda Audi – acessado 15/04/2020). Diante do fato, no dia 16/04/2020, a presidenta nacional do PT, deputada Gleisi Hoffman, cobrou uma posição do presidente do Banco Central pela fala genocida: “não tem preço a vida. Ou desmente ou pede demissão”.

Não há dúvida de que a posição de Bolsonaro e parte de alguns setores do mercado diante da pandemia da covid-19, como comenta o ministro do STF, Gilmar Mendes, é a de colocar em prática uma política pública genocida. No discurso em que anunciou a demissão do ministro da Saúde e indicou o seu sucessor, o presidente deixou claro que é contra o isolamento social, criticou governadores e prefeitos, além do STF. Além disso, em um tom autoritário e demente, disse que ninguém pode tirar o direito de ir e vir dos outros, numa clara referência às críticas que ele vem recebendo por se expor constantemente em público com o intuito de desmoralizar a política de isolamento social e para defender o direito de seus fanáticos seguidores de realizarem manifestações públicas contra as medidas de distanciamento social, bem como para garantir que os pedidos de pastores evangélicos de abrirem suas lojas (templos) de vendas de bens religiosos e exploração da fé sejam atendidos. Para os seus apoiadores, diz Bolsonaro: “não colocarei meu exército para proibir eles de se manifestarem”.

Fica claro, portanto, que o exército não é mais da Nação, é de uso privado de Bolsonaro para garantir a sua vontade e proteção de seus seguidores. Não é à toa que as Forças Armadas ficaram caladas quando, no dia 25 de junho de 2019, um avião da comitiva do presidente, que viajava para participar da cúpula do G20, foi flagrado e detido na Espanha carregado mais de 39 quilos de cocaína, que se encontrava na bagagem de mão do sargento Manoel Silva Rodrigues, membro da comitiva presidencial e amigo pessoal de Bolsonaro. Outro caso, quando, no dia 24 de fevereiro de 2020, Sérgio Mouro, em visita a Fortaleza, por causa do motim de polícias militares, muitos desses apoiadores do presidente, disse que a situação era normal e fez vista grossa ao que prega a Constituição Federal, que proíbe a greve de policiais militares.

No Brasil, temos um governo cuja marca mais visível e mais forte é a mentira, a monstruosidade e o abuso de poder. Por outro lado, temos um Congresso e um STF conveniente, partícipe e cúmplice da política neoliberal do não governo. A crise econômica agravada pelas medidas tomadas por Paulo Guedes, que terão consequências negativas por mais de uma década, não foi capaz de gerar uma movimentação na direção de novos rumos para o país. Mas, a crise do coronavírus demonstrou o quando temos um não governo, alguém que ocupa um cargo sem ter noção das responsabilidades que lhe cabe, tampouco interesse em dialogar e atender aos anseios e necessidades da maioria da população, nem mesmo a de ser um figurino representativo da liturgia do cargo.

Ficou visível que Bolsonaro é um irresponsável, um moleque. Alguns chegaram mesmo a qualificá-lo de louco e a defender a sua interdição, outros acham que se trata de um desamado que não tem a vida como um valor, que não tem o respeito por si e nem pelos outros. Eu acho que ele é um fascista bem focado, e sua política genocida nos desafia, com máxima urgência, a pensar um conjunto mínimo de medidas que constitua um programa de ações imediatas de governo, e para dar unidade a uma rede de movimentos e partidos em sua defesa; pensar em médio prazo outro país e um novo horizonte, que devem iniciar com a interrupção do governo Bolsonaro.

Se ainda não podemos ocupar as ruas, por causa do isolamento social, podemos formar uma opinião pública por meio das redes sociais. Podemos usar nossas janelas para todo dia, no mesmo horário, bater panelas ou gritar “fora Bolsonaro”. Podemos enviar mensagens para deputados federais, senadores e membros do STF pedindo a instalação do processo de cassação do presidente e do seu vice. Devemos exigir eleições diretas para presidente da República.

1 Uribam Xavier – Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC.

Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.

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URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.