Forjar no trigo o milagre do pão

Talvez uma das maiores lições que a pandemia da covid-19 está a nos re-ensinar é esta: quem cria riqueza (valor) é o trabalho, não é a especulação financeira. Esta suga o que puder do trabalho, gerando bolhas de ganhos artificializados para os especuladores, ao custo da deterioração sempre maior das condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do mundo, por meio dodesemprego estrutural e arrocho salarial gerado pela lógica interna do neoliberalismo globalizado.

 

Devido às relações de intercâmbio das pessoas entre si e com a natureza, o trabalho gera bens materiais e espirituais. No dizer de Chico Buarque de Holanda, pelo trabalho os humanos decepam o trigo, recolhem cada bago, para forjar no trigo o milagre do pão. São dois os milagres: o do trigo (da natureza) e do pão (do trabalhosocial humano).

 

O trabalho é matriz de humanização, onde a cultura se forma: formamo-nos humanos pela maneira como produzimos nossa existência. Segundo o filósofo húngaro György Lukács (1885-1971), pelo trabalho dá-se o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social; a consciência humana deixa de ser uma mera adaptação ao meio ambiente e configura-se como atividade autogovernada, possibilitando-nos ir além de nossa animalidade, ir além da consciência epifenomênica, determinada pela dimensão biológica, adquirindo nossa dimensão universal e transcendental, por meio do exercício de nossa liberdade. Comporta em si uma marca particular e insubstituível: a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas. Tal marca determina a qualificação intrínseca do próprio trabalho.

 

Se até os anos 1970 o compromisso dos “welfare states” era com o pleno emprego e o crescimento, a partir doneoliberalismo dos anos 1980 a centralidade reside no poder do Dinheiro a impor estabilidade monetária (inflação próxima de zero) e equilíbrio macroeconômico (superávits primários e câmbio flutuante). Pela intensificação dos mercados globais o mundo do trabalho se viu fragmentado, fragilizado o poder dos sindicatos, acarretando um forte aumento do desemprego, com verdadeiras populações desocupadas permanentemente. Oresumo dessa ópera neoliberal é expresso pelo forte arrocho fiscal impedindo a capacidade de investimento dos Estados devido à desaceleração do crescimento econômico. É o que vemos no Brasil a partir do governo Temer, fortemente aprofundado no governo Guedes-Bolsonaro: aumento da pobreza e do desemprego.

 

Primeiro de Maio é o dia dedicado aos trabalhadores e trabalhadoras do mundo. É um momento de uma parada com intuito de celebrar, mas principalmente de refletir ede pensar pautas por melhores condições de vida para aqueles que vivem do suor do seu trabalho; reflexões voltadas para tornar a vida humana ainda mais humana. Por isso mesmo o engajamento político assume importância fundamental.

 

*No Primeiro de Maio de 2010*, em meio ao processo de construção de um modelo de Estado de Bem-Estar brasileiro, iniciado em 2003, o presidente Lula em sua mensagem oficial em rede de televisão nacional afirmou: “Falo como sempre falei, olhando nos olhos de cada trabalhador, de cada trabalhadora. Temos comemorado ano após ano de nosso governo o aumento do emprego, do salário mínimo, da massa salarial, do crédito e do poder de compra do trabalhador. Temos comemorado também o crescimento da economia e a clara retomada dos investimentos estatal e privado, baseado no crescimento sustentado, na distribuição de renda e na diminuição da desigualdade, entre as pessoas e entre as regiões.

 

*Por sua vez, em Primeiro de Maio de 2014*, a presidente Dilma Rousseff, em sua mensagem oficial em rede de televisão, declarou: “Estamos vencendo a luta mais difícil e mais importante: a luta do emprego e do salário, nesses tempos difíceis que a economia internacional atravessa. Ontem assinei um decreto que atualiza em 10% os valores do Bolsa Família, recebidos por 36 milhões de brasileiros, assegurando que todos continuem acima da linha da extrema pobreza definida pela ONU.  Além disso, continuamos com a política de valorização do salário mínimo, que tantos benefícios vem trazendo para milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Porém, algumas pessoas reclamam que nosso salário mínimo tem crescido mais do que devia. Para essas pessoas, valorizar o salário mínimo é um erro do meu governo. Por isso defendem adoção de medidas duras sempre contra os trabalhadores. O meu governo nunca será um governo do arrocho salarial, nem o governo da mão dura contra o trabalhador. Nosso governo será sempre o governo da defesa dos direitos e das conquistas trabalhistas. Um governo que dialoga com os sindicatos e os movimentos sociais para encontrar caminhos”. Nessa declaração da presidente Dilma em 2014 está registrada para a história uma das graves razões pelas quais a classe dominante desse país perpetrou o Golpe de 2016.

 

Agora, no Primeiro de Maio de 2020, o presidente brasileiro propositalmente calou. Não enviou uma mensagem oficial. Não celebrou a data, tornando-a oficialmente invisível, irrelevante, demonstrando oficialmente desdém pelo mundo do trabalho, da mesma forma que oficialmente o faz com o crescente número devítimas da covid-19 (“eu não sou coveiro”, “e daí?”). Ocultou e ocultou-se. Porque seu compromisso é com o Capital. No recente estudo “More Than Words (Mais Que Palavras), publicado pelos economistas Nicolas Ajzenman(Fundação Getúlio Vargas), Tiago Cavalcanti (Universityof Cambridge) e Daniel Da Mata (Fundação Getúlio Vargas), os autores demonstram a relação existente entre o impacto que os discursos de Bolsonaro provocaram no comportamento de grande parte da população que o elegeu, referindo-se à forte queda do isolamento social após seus discursos em rede de televisão insinuando que a covid-19 é “apenas uma gripezinha”, sinalizando para as pessoas ocuparem as ruas, contrariamente ao que defendiacientificamente o então ministro da saúde Henrique Mandeta. O impacto do discurso (e não-discurso) doslíderes ao influenciar o comportamento dos liderados é uma das conclusões centrais deste estudo. O calar (não falar) de Bolsonaro no Dia do Trabalhador não é neutro. Épolítico. É ideológico. É um ato a revelar o sujeito e suas ações, seus compromissos, seu desdém pelos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .